30/09/2010

O doce mar

Esse é um fim de semana especial por causa desse amigo que vive recluso na Barra da Lagoa e só aceita visita uma vez por ano, justamente no dia de eleição. É uma espécie de síndrome, ou algo assim, que ele adquiriu desde o fim da ditadura.
Juntamos um pessoal e compramos um poodle no caminho pois achamos que seria um presente que o animaria, com toda sua pelagem fofa e olhinhos carentes.
Chegamos lá e encontramos a mulher triste, toda de preto. O que houve?, perguntamos. Ele morreu! Foi tudo o que ela disse naquele momento.
Entramos na casa e encontramos ele lá, estirado na cama, presunto ainda fresco e ela sem saber o que fazer. Morrera naquela madrugada. Depois de anos de ditadura e censura ele aprendera a se comunicar de forma elíptica, de modo que na cama ele disse pra ela: Joga a sua... para... que eu vou ... nela e depois... a minha... até o...! Ela se excitou e respondeu: Então... a minha... até... toda... no ...! Finalmente ele disse como num grito: vem... no... explodindo... do...!
Naquele momento ela começou a duvidar se ele queria sexo ou pagar a conta do telefone. Céus como era terrível e ridículo viver sob censura! Olhou pra ele e ele estava lá, morto, enfartado.
Olhei para meus três amigos e logo, por olhares, entendemos o que seria preciso fazer. Um deles era químico e logo deu um monte de pílulas diluído num café para a esposa do falecido. Você vai matá-la assim!, eu disse, mas ele me tranquilizou que aquilo era apenas o suficiente para mantê-la apagada.
Construímos uma jangada com umas madeiras e pedaços de isopor que tiramos de uma caixa de bebidas. Botamos o corpo do falecido lá estirado, a mulher desmaiada ao lado e levamos para a praia. No bolso dele a foto que ele sempre levava, por motivos que desconhecíamos, de um camelo sem patas, pobre animal!
Chegamos na praia e os pescadores nos cercaram, entendendo a gravidade solene que o assunto requeria. Encharcamos o corpo do falecido com gasolina, e da mulher também, que partiria com ele como as antigas concubinas dos faraós.
Botamos o cachorro na jangada e a lançamos no mar. Quando ia a certa altura um colega embaixador, familiarizado com o cerimonial, arremessou a tocha que incendiou balsa. O cachorro gritava em pânico e alguns tiveram a impressão de ouvir uns gemidos da mulher que seguia amarrada, mas podia ser apenas o vento do mar.
A jangada rumou em chamas para a linha do horizonte, enfim afundando, enquanto um outro amigo, escritor, fazia um discurso de despedida.

25/09/2010

Censura

é impressionante como os jornais vivem querendo apoio popular bradando contra a censura, mas são os primeiros a censurar.
Todo mundo um dia terá seus 15 minutos de censura.Agora foi a minha vez e me cortaram uma palavra da última crônica. Aparentemente alguém na redação ficou muito horrorizado com a palvra cetâo e cortaram ela, deixando o personagem como um idiota com a frase inacabada. E nem o pobre do camelo pouparam, cortaram a pata de camelo também.
moralismo provinciano vulvofóbico!

22/09/2010

Octaedro

Walter era um dos meus melhores amigos na idade de oito anos, estudávamos juntos e ele sempre dormia na aula. Walter, eu chamava. Walter, acorda!
Um olho abria lentamente e espiava, logo abrindo o outro e começando a narrar a coisa mais absurda do mundo com a qual acabara de sonhar. Repetia esse ritual toda manhã na primeira aula. Era o único amigo de escola que me havia restado depois que os professores decidiram dividir a turma com quem eu andava no ano anterior entre as salas de aula pra dividir o grupinho. Talvez tenha começado com isso o ódio por aquele colégio que só aumentou durante minha vida. Ríamos alto da história maluca que ele contava e lá vinha a tia, furiosa, exigindo silêncio. Impedidos de falar, ficávamos apenas olhando para a frente, aquele corpo suave e juvenil de professora de primário. Tenho certeza que foi assim que Walter aprender a distinguir as partes da anatomia feminina por baixo das roupas, ensinando-me o truque anos mais tarde. Era uma saída de colégio ao meio-dia quando ele virou pra mim e confidenciou: a profi tem um cetão!
Bastou isso para que eu percebesse, um tanto quanto tardiamente, o mundo feminino ao meu redor e o fenômeno natural da pata-de-camelo. Logo, logo comecei eu também a desenvolver os poderes perceptórios que ele me ensinava e passava a aula inteira parado, olhando o corpo das professoras, sem copiar nada. Ouvia a voz que explicava a matéria tentando construir em meu cérebro frases de súplicas sensuais. Gostava daquilo, muito mais do que o antigo método de assistir aulas, embora minhas notas começassem a declinar. Somente meu amigo compartilhava comigo deste estranho poder que tínhamos e foi um golpe quando ele foi para outra escola. Passei a zanzar sozinho pelos corredores, agora usando as técnicas que eu aprendera com todas as garotas que via, não só professoras. O último poder secreto que meu colega me ensinara antes de partir foi o de perceber e decifrar teorias da conspiração e mensagens subliminares. Todos estão atrás de você, estão te observando, esperando um passo em falso, ele dizia, e para descobrir o que eles querem basta ler as mensagens ocultas que eles trocam, palavras escondidas que se formam com a primeira letra de cada frase.
Claro que aquilo isso já era loucura demais pra minha cabeça. O poder de superpercepção era legal, mas aquele lance de mensagens subliminares já era demais. Mais vale viver de olhos fechados do que abri-los para descobrir o terror e a loucura.

15/09/2010

A arte de atropelar locomotivas

Eu costumava a acreditar que era eu quem tinha abandonado e desistido da televisão, dos jornalões emplumados e revistas semanais que se pretendem nacionais, mas só agora entendi que foi ao contrário, foram eles que desistiram de mim.
A conta é muito simples, é mais lucrativo investir num conteúdo simplório e de baixo custo, vendendo a uma parcela menor de consumidores, do que gastar dez vezes mais produzindo conteúdo decente para dobrar as vendas atingindo o consumidor que queira algum conteúdo. É um processo que se estende desde televisões que deixam de fazer programação pensada para executar programas de auditório e reality shows, que têm baixo custo e exigem apenas uma câmera na mão e nenhuma idéia na cabeça, até os jornais que substituíram o jornalismo por um exercício banal de denuncismo vazio: grampo sem áudio, vídeo sem imagem e por aí vai, qualquer coisa que os ajude a vender.
É um desespero agravado pela revolução digital. Todo novo meio de comunicação, quando surge, causa certo impacto nos demais, que vai se diluindo com o tempo. O rádio não acabou com o jornal, o cinema não acabou com o rádio, nem a tevê acabou com o cinema. Os meios tradicionais suportaram bem a internet que já chega agora ao fim da adolescência e se prepara para a maioridade.
Mas nos últimos anos, por uma série de erros de planejamento e decisões erradas das empresas de televisão e jornalismo, o processo se acentuou. Os jornais abandonaram os princípios do jornalismo para tentar manter o público que consideravam fiel, mas, com isso, aqueles que vendiam 1,5 milhão de cópias nos anos 90, agora vendem um décimo disso. São obrigados a distribuir exemplares de graça em postos de gasolina e shopping centers. Foram atropelados por jornais locais e pela difusão da informação em blogs e redes sociais. Antes eram os blogs que repetiam notícias de jornais, hoje é o contrário, são os jornais que repetem os blogs e twitters mais comentados.
A Gazeta Mercantil já fechou as portas. Agora é a vez do Jornal do Brasil, que passou a existir somente na internet. Os grandes jornalões restantes vivem basicamente de compras feitas por governos estaduais sem licitação, em troca, é claro, de apoio aos mesmos no período eleitoral. Coisa que vemos agora, em que sai um escândalo diferente por dia e nunca o conteúdo da matéria corrobora a denúncia na manchete.
Enquanto isso, a internet passa, pela primeira vez, a mídia tradicional no faturamento de publicidade. RIP.

Currado em um caminhão de bóias-frias

Andando pra lá e pra cá, por vezes, o sujeito acaba passando por algum aperto. O diabo da idéia foi se meter numa excursão lá pro interior do Pará e voltar achando que tudo bem se pegassem carona.
No primeiro dia ela só teve que levantar a blusa e mostrar os peitinhos e tudo transcorreu em paz. Foi uma bela carona, quase trezentos quilômetros e os dois, ela e o cara com óculos de aro fino, conseguiram sair do meio do nada empoeirado para chegar ao lugar nenhum cheio de pó. Fizeram feliz um motorista que há muito tempo não via peitinhos, principalmente peitinhos firmes como aqueles.
O casal estava preparado, carregava uma barraca iglu, isolantes térmicos, pão seco, meio quilo de castanhas e, ainda, biscoitinhos de soja e guaraná em pó. Com isso poderiam encarar qualquer coisa que viesse pela frente. Naquela noite ele tentou finalmente conseguir algum avanço com ela que fosse além dos beijinhos iniciais. Estavam viajando há muito tempo juntos e o companheirismo era grande. Some-se a isso que ele vira, pela primeira vez, os peitinhos dela nessa tarde, o que fez a felicidade não só do caminhoneiro, mas dele também.
Ela consentiu aos poucos com alguns beijinhos e permitiu umas apalpadas, mas ficou nisso. Disse que estava cansada, precisavam dormir e tal. Ele tinha certeza que se insistisse mais, conseguiria, mas tinham muita viagem pela frente e não quis apressar as coisas, quis curtir com calma a conquista inevitável. Já ela ficou feliz por não ter que queimar ainda naquela noite o papo de que eram amigos e tal e cortar o cara, o que azedaria a viagem.
No segundo dia foi cruel, andaram por horas a fio e nada de nenhum veículo passar. Chegaram por fim num boteco no meio do nada onde só havia o dono do local, completamente bêbado, que consentiu em dar uma carona a eles. No meio do caminho o cara parou e disse que só tocava adiante se ela lhe desse uma chupada. Depois de muita negociação o combinado ficou em uns beijos e amassos e a viagem continuou.
Armaram novamente a barraca perto da estrada naquela noite e ele achou que ia se dar bem, mas ela o dispensou dizendo que ficara meio traumatizada com o que ocorrera durante o dia. Ele sabia que era uma mistura irresistível de Marlon Brando com Woody Allen, de forma que ela certamente cairia por ele em breve, então aceitou.
E então, no terceiro dia, estavam finalmente chegando perto de uma cidade maior e conseguiram carona num caminhão de bóias-frias. O clima na traseira do caminhão pareceu tenso desde início. Aqueles pobres trabalhadores rurais, suados, cansados, com meses de trabalho escravo nas costas sem comer ninguém. Eram doze. Um deles sussurrou algo ao motorista e o caminhão parou.
O rapaz deu um pulo. A coisa estava indo longe demais, cada dia pior, era dever dele como homem defender a moça, para conquistá-la de vez:
- Ninguém toca nela, me ouviram? Ninguém vai tocar nela! Chega, acabou essa palhaçada! – bradou ele.
- Que isso, meu rapaz? Aqui a gente é respeitador, não ia fazer uma coisa dessas com uma moça, não, não é? – perguntou um dos trabalhadores aos demais.
- É isso aí! Queremos o viadinho de topete, o que parece o Marlon Brando.
Ela se afastou do caminhão, por pudor, e esperou sob a sombra de uma grande árvore enquanto os doze se revezavam sobre seu companheiro de viagem. Depois seguiram o rumo e nunca mais tocaram no assunto ou voltaram a se ver.

02/09/2010

A arte da derrota

Eu parei de me interessar por futebol em algum lugar ali entre a infância e a adolescência, e boa parte da culpa era desse sujeito da escola.
Era um daqueles tipos insuportáveis, antipáticos, que ia para a educação física tagarelando sem parar, dizendo que era melhor, que podia jogar sozinho contra o outro time, mais capaz, que tinha feito escolinha no Avaí e por aí vai.
Ninguém suportava o sujeito.
Mas o que todo mundo odiava nele, mais que a tagarelice, era que mal começava o jogo e o sujeito ia perdendo a pose. Perdia as bolas, dava bicão pra longe, tomava sempre o drible pelo meio das pernas e, quando isso acontecia, ficava furioso, queria cair na porrada, partia pra cima dos outros pra tentar quebrar uma perna ou joelho na dividida.
É claro que o professor tentava acalmar e conter o cara, e dava uma, duas, sucessivas faltas. Foi aí que ele começou a apelar de vez e, antes mesmo do jogo começar, já começava a dizer que o juiz era ladrão, que estava em conluio com o outro time, que ele era vítima de um complô. Quando começava a levar cartão depois de dar socos no time adversário ele justificava: Tão vendo? Não disse que o juiz era ladrão?
Essa são coisas que não deveriam contaminar a visão que a gente tem do esporte, mas infelizmente vai desgastando. A gente começa associar o esporte com a sujeira e logo desanima. Passei para outras opções mais interessantes, como hockey no gelo, basquete, e, por fim, vôlei feminino, um esporte que é uma mistura de graça, elegância e desfile de modelos.
As décadas passam e a gente vai esquecendo e perdoando certas coisas e mal se lembra do que aconteceu nos campinhos de várzea da infância perdida nos anos 60. Outro dia o sujeito me aparece do nada, dizendo que queria reunir o pessoal para jogar outra vez, relembrar os velhos tempos.
Mal começa a partida e vêm a tona outra vez as memórias daquele tempo, só que numa versão piorada. O sujeito já quase idoso, misturando agora uma certa paranóia senil aos mesmos truques, a mesma violência contra adversários, a mesma tentativa vergonhosa de tentar ganhar através da calúnia ou no tapetão.
Mas se ele era o mesmo, ainda piorado, nós certamente não éramos. Há muito já havíamos deixado aquela infância que se deixa levar por maus perdedores. Um coisa é perder, algo que não é desonra, mas um exercício de superação moral, outra é apelar para a calúnia e agressão quando percebe a inevitabilidade da derrota. Mas agora nos tornamos adultos e os velhos golpes não colam mais.