25/11/2010

Transitório

Anseio pelo brilho do vidro, a velocidade leve do silício, o rangido pungente de chapas de aço que se rasgam. Anseio pelo riso de crianças turbinadas com 100 Megawatts, o raio que fulminará minhas carnes com o som e fúria de que Shakespeare nos falava, o menestrel que virá à cidade trazendo a peste, ou a morte da máscara rubra de Poe.
Respiro os lixos que saem das máquinas que nos dão autonomia de deslocamento, chumbo, enxofre e gritos de horror. Respiro os lixos que saem das pessoas em esgotos e lixeiras e poeira da rua, suores e excrementos, os pensamentos alucinados que escoam pelas esquinas e recantos sujos deste espaço urbano.
Cérebro e osso e olhos e víscera e tudo mais em sua simplicidade profunda. Pedaços de carvão amontoado e misturado com água, numa combinação muito particular, onde o arranjo do sistema, a relação entre cada molécula, é mais importante que o material que a constitui.
Supernovas que explodem a cada minuto em silêncio mudo e distante a milhões de anos luz, potentes como os girassóis vespertinos de Bukowski. Nebulosas parindo milhares de estrelas, soltas no espaço como girinos na água, a grande maioria destinada a uma morte prematura.
Corro pelas cidades e metrópoles e corpos e planetas atravessando a todos como neutrinos em rota de trânsito pela terra e navego no vento solar competindo com a luz em uma corrida fadada ao fracasso. Corro com moléculas voláteis e sinto o prazer em devorar partículas que não existem por mais que frações de segundos.
Mergulho em direção da vertigem e da cachoeira, o jorro de idéias e pessoas e filamentos de carbono, ácidos, aminoácidos e proteínas, nucleotídeos, peptídeos, feromônios e matrimônios. Mergulho em direção ao pósitron e ao antipróton que me aguardam pacientes para o confronto final, a aniquilação mútua de matéria e antimatéria.
Escombros de civilizações entulhados no ferro velho da história, como o império caído de Ozymandias, de Percy Shelley, ou as ruínas de uma antiga civilização lovecratiana com seus altares a Ctulhu ou Nyarlathotep. Pilhas de corpos árabes empilhados em chamas na nova cruzada moderna ocidental.
Descanso enfim no ocaso dos tempos e na escuridão inerte das tumbas há muito enterradas e soterradas. Descanso nas minas abandonadas e lagos subterrâneos e aquíferos onde a vida bacteriana segue não perturbada, meus fragmentos de corpo em distensão relaxada e meus pedaços de informação espalhados, enfim, na rede biosférica.

17/11/2010

O velho vestibular

As eleições mal acabaram e a campanha pra 2014 já começou. É o novo paradigma da propaganda política, a criação de uma crise permanente, seja ela fundada em bases reais ou não. A bola da vez agora é tentar prejudicar mais de três milhões de estudantes anulando uma prova que fizeram apenas para desgastar o governo. Ano passado já fizeram isso, curiosamente o jornal que publicou a prova vazada era a mesma empresa dona da gráfica que deixou vazar o conteúdo. Coincidências, é claro.
Nessa guerra de informações vale tudo, até mesmo pegar uma frase qualquer de uma autoridade e fazer um artigo inteiro para dar um sentido inverso. É impressionante mesmo, Fausto Wolff estava certo sobre o romance de Orwell, estamos vivendo o 1984 desde 1964. Na histeria do momento não falta quem queira cancelar o modelo de avaliação nacional, similar ao feito na Alemanha e EUA, e voltarmos para o antigo sistema do vestibular apenas.
Ah, sim, doces memórias do vestibular. Lembro que o grande truque era se inscrever naqueles aulões de fim de ano, onde todo o conteúdo era condensado em 20 dias de aula. E os professores eram aclamados como verdadeiros gênios porque “adivinhavam” as questões do vestibular, um misto de ensino científico e xamanismo premonitório.
É claro que ninguém mais é criança e podemos parar de brincar nessa história. Os professores de cursinho são contratados pelas universidades para redigir questões de vestibular, daí vem o seu dom premonitório: o aluno que paga recebe dele a informação privilegiada sobre as questões que cai. É claro que eles não podiam admitir que estavam violando o sigilo da prova, então vinham com papos divertidíssimos de sonhos mediúnicos e passavam no quadro questões inteiras do vestibular, palavra por palavra, cada alternativa, com a devida resposta.
Era um esquema que todos gostavam. Os cursinhos porque faturavam, os alunos porque ganhavam uma vantagem indevida sobre outros candidatos e os professores porque viravam gênios do saber. Depois era divertido ver ainda os cursinhos que se vangloriavam da aprovação dos seus alunos, sem mencionarem, é claro, o crime federal que cometiam vazando questões da prova para os mesmos.
É certo que a fraude começa a patinar no momento em que surge um exame nacional que desarticula todos esses arranjos locais de corrupção. Não é, portanto, de se estranhar que o exame desagrade e cause movimentações tentando exterminá-lo para o retorno ao velho esquema. Ah, o saudosismo!

10/11/2010

O bar

O Bar

O que mais gosto no bar é a sensação de falsa solidão. Às vezes o bar tá carregado de gente se espremendo pelos corredores suarentos e vocês se sente completamente só lá dentro. Às vezes o bar está vazio, você bebendo sozinho, emborcando todas no ambiente escuro e parado, mas se sente como se estivesse em uma festa agitada onde você conhecesse todos por dentro.
É como um grande universo, pessoas que não percebem que estão sendo vigiadas e observadas. Tem aquele cara com jeito de fracassado no canto que fica olhando para a espuma do copo sem dizer uma palavra. Tem aquele outro obcecado com um assunto do trabalho que martelou sua cabeça o dia inteiro e não lhe dá sossego nem agora. Tem aquele outro arrependido, que se acha um imbecil, um idiota que acabou expulsando todos de sua vida e agora está só. Tem aquele outro que se apaixonou por uma garota com metade de sua idade e não pode pensar nela que chora, balbuciando apenas que ela é um buraco negro contra qual o espaço pode apenas se curvar.
Tem aquele outro cara alegre, que bebeu demais e ficou sociável demais, conversando com todo mundo em todos os cantos. Tem aquele outro que levou um livro para ler e não ser incomodado e finge que se concentra na leitura. Tem aquele garoto que precisa estudar para uma prova amanhã e parou ali para tomar uma cervejinha e relaxar. Tem aquele fumante de cachimbo que briga com o cigarro que não lhe apetece tanto quanto o seu fumo normal.
Lá no canto, naquele mesa, tem aquele outro que sentou-se de frente pra tevê e finge assistir ao jogo de futebol, muito embora odeie futebol. Tem aquele outro com um DVD de um filme de drogadição dos anos sessenta com trilha sonora do Pink Floyd. Tem aquele outro que quer ser escritor mas sabe que é uma carreira de fracassos. Tem aquele outro que queria montar uma banda de punk rock e veste umas roupas rasgadas, mas nunca foi punk.
Por fim tem o outro cara que fica só olhando as meninas que passam, tentando furar o vestido com os olhos ou adquirir o poder de ver através deles. Tem o cara que tenta conseguir algumas meninas mas já bebeu tanto que não consegue falar olhando para o rosto delas, apenas para o decote. Tem o cara que pensa como a vida teria sido se tivesse arranjado um emprego decente e se entupido de grana, sentado no mesmo banco daquele outro que pensa que deveria ter desistido de tudo de uma vez, ido morar nas ruas e viver selvagemente.
Passa dia e noite e o bar está sempre cheio de velhos sonhos e pesadelos.

03/11/2010

Uma coisa e tanto

E então eu conseguia realmente me relaxar, libertar. Oxitocina adoçando minhas veias com uma estranha calma sem fôlego. Ela ficava rindo de mim com uma cara sacana e fingindo que não me entendia.
Eu posso dizer que tive sorte. Poucas pessoas tem a chance de fazer um acordo com a morte e não cumpri-lo. É claro que a ceifadora não deixou barato e me bateu como um cão esfarrapado, feridas de sarna à mostra e tudo o mais.
Mas ela compensava tudo. Ela tinha mania estranhas que me divertiam. Aquela coisa que ela fazia babando, por exemplo. Um longo fio de baba correndo pelo queixo, litros e litros de baba escorrendo pela boca. E eu olhava aquilo e ria satisfeito, sentindo-me agraciado.
Aí ela babava em mim, espalhando a baba, escorrendo baba em tudo, até mesmo no chão. Eu ria e dizia: não pare agora, não pare. E ela olhava pra mim, e ria, e fazia algo com os cabelos que até hoje não entendo o que era, mas a deixava parecida com a Rose McGowan, com direito a metralhadora na perna amputada e tudo.
Então ela botava uma música do Robert Johnson pra tocar, um disco de vinil velho e rachado em que apenas algumas músicas ainda tocavam. “Me and the devil” era a favorita dela, como se quisesse a qualquer momento confessar que fosse uma súcubus saída do meio de um filme ambientado no Haiti, como aquele da serpente e do arco-íris.
Aí eu ia até a vitrola e colocava uma música qualquer do Pink Floyd para me dar um tempo para respirar e alongar aquela misancene toda. E ela dizia que eu a fazia realmente feliz e eu fingia por um minuto acreditar, apenas para não cortar o clima do momento, enquanto “Paranoid Eyes” tocava.
Aí ela vinha pra cima de mim com aquele fio de baba à la Alexis Texas que corria pela casa toda e se alongava e ríamos e eu fechava os olhos ouvindo a música e sentia que, de alguma forma, o mundo não era o mundo, eu não era eu e nada era nada.
Acho que apaguei algumas vezes fazendo isso, e acordava com ela sentada, olhar sério. Um calafrio me vinha de imediato porque eu sabia que aquilo não era bom sinal, era a virada da maré, o preço amargo dos relacionamentos, quando a meia-noite passa e as pessoas começam a trocar segredos e dores e mágoas e traumas.
Eu não era bom com isso. Era essa a parte que me ferrava. Eu sabia que era só ficar sentado ali e concordar com ela e tudo que ela dissesse e então dizer que era tarde e tinha que ir embora e assim por diante. Mas de alguma forma a coisa não funcionava. A farsa caía naquela momento e eu nunca consegui me comunicar, sintonizar no mesmo nível de empatia. E tudo então acabava.