03/05/2011

Mudança

meu amigo,

devo (novamente) pedir desculpas, eu pretendia manter dois blogs, mas, com o tempo, acabei mantendo só o outro e esqueci de avisar aqui. Este, além dos meus textos, traz outras bobagens adicionais:
http://ogiq.blogspot.com/

valeu!

25/03/2011

Identidades

Recentemente agora teve um canal de tevê fechada que exibiu um docuficção, isto é, um filme ficcional com a roupagem de documentário tradicional. Não foi a primeira vez, na outra o tema fora dragões e nesta o tema foi sereias, dando tratamento aos seres lendários como se realmente existissem. E nas duas vezes a resposta surpreendente do público (ok, nem tanto) foi acreditar que aqueles seres realmente existiam.
Isso é uma preocupação constante de quem produz ficção. O sujeito vê um filme de guerra e vai pro bar bater papo crente que a guerra foi mesmo como no filme. Exemplos recentes incluem a devolução de iraquianos de uma americana ferida, que foi retratada em filme como se ela fosse resgatada dos iraquianos malignos. É uma canalhice sem tamanho, como o que fazem agora na Líbia.
O jornalismo é, normalmente, muito mais ficcional que a literatura, com a diferença que a literatura se diz ficção para tentar escoar não-ficção, enquanto o jornalismo faz o inverso. Nesse mundo de ninguém sabe quem come quem não é de se admirar que o leitor fique confuso.
Peguemos, por exemplo, a imagem acima nestas plúmbeas folhas. Em nenhum lugar está escrito que se trata de foto do autor ou algo assim, embora induza a maioria a pensar nisso. Apenas muitos poucos perceberão que se trata, na verdade, de uma ator contratado, uma personagem, como as que passam por estas linhas. O ator tem cerca de meio metro a mais que eu e uns cem quilos a menos. Ele tem a vantagem de não ser careca como eu, mas ainda assim teve que usar uma peruca para se enquadrar no figurino. O visual todo é uma montagem, uma colagem. Os cabelos são uma peruca de Gal Costa, em homenagem ao gosto musical da mãe do autor. A roupa preta foi tirada de um colega de adolescência, o vulgo Iói, figura folclórica dos anos 90 de Floripa. Os óculos vermelhos do bom amigo Paulo, hoje hospitalizado por causa do trânsito selvagem que temos. A barba era para ser mais longa e grisalha, mas as lojas que vendem esses itens não tem um estoque muito variado, então tivemos que nos contentar com essa mesmo.
Em suma a maioria das pessoas, principalmente nos dias de hoje, vive da imagem, tende a acreditar na imagem e achar que seus olhos nunca o enganam , quando são vítimas de fraudes 24 horas por dia. Nunca se deve acreditar em um escritor, embora ele não minta, não me leve a mal, apenas inventa verdades ficcionais, que é aquilo para o que é pago, ou não pago, na maioria das vezes. E pessoanamente finge a dor que deveras sente.

17/03/2011

E matas o gato, o rato e o homem

Confesso, para meu próprio assombro, certo prazer de andar em cemitérios. Os mortos, na verdade, são bem melhores companhia que os vivos, mais silenciosos, na maioria das vezes. Mas meu assombro vem do fato de que acho condenável essa coisa toda de cemitérios: a carne ali embaixo da terra apodrecendo e poluindo rios, mangues e leitos de água. Tanto do ponto de vista sanitário quanto econômico, a coisa é uma loucura, mais sentido faz a incineração, que também permite os rituais fúnebres e tudo mais que a família do morto queira.
Mas acho que meu gosto por cemitérios vem de três fontes: os locais são geralmente limpos, silenciosos e vazios, um bom local para ler, ainda por cima com enfeites florais; a idéia de que pessoas comuns podem também ter seu monumento público, como as estátuas que tem pela cidade, e ter um epitáfio sobre si enfeitando aquele monumento pelo tempo que a família se dispuser a pagar e, por fim, meu gosto pelos velhos e antiquados filmes de terror.
Quando eu digo velhos, quero dizer os velhos mesmo, preto e branco, de preferência, com ponto extra se tiver sido produzido pela antiga Hammer. É claro que não há muita diferença com os filmes de hoje, ainda se trata de vampiros, lobisomens e bláblábla, exceto que naquela época vilão e mocinho se confrontavam para ganhar a atenção da mocinha e hoje as mulheres aprenderam a quebrar o pau ao invés de ficar gritando, e é a mocinha que enfrenta o vilão em disputa da atenção do mocinho.
Abomino os velórios. Acho que nossos velórios deveriam ser como os irlandeses, um grupo de bêbados amigos do finado enchendo a cara de cerveja a noite inteira e cantando músicas de bebum. Se eu fosse ter um velório assim, não escolheria para ele uma trilha sonora, mas sim uma trilha visual, um grande telão passando filmes direto para as pessoas terem algo para fazer enquanto comem e bebem ao invés de ficarem chorando em cima de mim.
Começaria, é claro, com o Sétimo Selo, clássico de Bergman, que sempre me interessou por causa da derrota proposital para a morte. Em seguida, meia-noite, tacaria a Noite dos mortos-vivos, o original de Romero, com aquele início perfeito dos irmãos no cemitério sendo atacados por zumbis. Então, no meio da madrugada, Nosferatu, de Murnau, só pra não perder a piada de amarrarem meu corpo numa roldana e o erguerem no meio do filme, no mesmo momento que o vampiro se ergue do caixão. Encerraria a madrugada com a Vida de Brian, só pela música final.

12/03/2011

Meu mundo cão

Eu não sei se é uma boa qualidade saber aceitar a derrota ou insistir teimosamente e fracassar ainda mais. Militarmente ambas as opções são válidas, mas são restritas apenas por uma questão de hierarquia. Ao bom soldade é valoroso nunca desisitir, mesmo frente à derrota, e morrer com bravura estraçalhado pelas granadas e metralhadoras inimigas, mesmo que o combate seja, à priori, uma morte certa, ordenada pelos superiores apenas para distrair o inimigo de outra operação em andamento.
Já o para o bom general ou oficial é o contrário, o valoroso é perceber quando a guerra está inevitavelmente perdida e saber jogar a toalha, declarar a rendição antes que o número de mortes entre soldados e civis aumente exponencialmente.
A diferença, então, entre ceder ao fracasso e morrer teimosamente é uma opção de classe, de hirarquia social, aos de baixo só resta a morte enquanto os do topo podem se dar ao luxo de fracassar e desfrutar das condições especiais de encarceramento para oficiais rendidos ao longo de toda a guerra.
Não é justo, eu sei, mas ninguém realmente acreditou que seria.
O problema maior começa, mesmo, quando estamos no fundo do poço da hierarquia social e percebemos que tudo que fizemos ao longo da vida redundou em fracasso. Você já andou tempo demais por aquele caminho para que seja viável voltar atrás, você morreria de velhice antes mesmo de voltar e conseguir escolher outra estrada. Só resta ficar andando em meio à poeira abandonada, rumando ainda mais ao fundo do abismo, ou sentar e puxar um palheiro e uma pinga e esperar o tempo passar.
Eu fico em dúvida se meu problema é porque fiquei tempo demais sem fazer nada aceitando o fracasso de minhas opções ou, pelo contrário, porque passei tempo demais sem perceber o fracasso e insistindo ainda mais em caminhar para aquele abismo final do qual não há saída nem fim.
Não é muito animador, eu sei, mas eu não achei que seria.
Acho que, no fim das contas, a regra do jogo é beneficiar o jogador profissional, aquele que está lá para vencer e obter o lucro máximo com o menor custo e tentar, à toda força, afundar aquele sujeito que não está nem aí para o jogo. Não adianta você explicar pacientemente que não quer jogar, que está mais preocupado com a guerra civil na Líbia e o levante trabalhista de Madison do que com o salário no fim do mês, pois eles baterão à sua porta, derrubarão sua casa, exigirão pontos de currículo ou de engenharia social. Exigirão que você jogue.
Nada funcionou, é verdade, mas eles acharam que iria.

03/03/2011

Na saia da infância

O que aconteceu com a minissaia? Hoje em dia é tão raro ver alguém usá-la. Símbolo máximo do poder e da liberação feminina que veio com a segunda onda do feminismo na década de 1960 (a primeira onda pelo direito de votar, no século XIX, e a terceira sobre as relações culturais de raça e classe, nos 1980 e 90), foi ela que me estimulou desde a infância ao feminismo precoce e à crença de que eu vivia numa época especial, que a tendência de futuro eram as roupas encolherem cada vez mais.
Mas, desde então, o que aconteceu? Nada. Pior que nada: retrocesso. As roupas voltaram a crescer e tapar tudo e aquele sonho de infância que eu nutria para minha vida adulta ruiu junto. É claro que há um lado bom na história, porque aqueles shortinhos masculinos justíssimos também sumiram, então não preciso mais andar por aí com minhas coxas à mostra, e pior, tendo que vislumbrar a coxa alheia.
Mas voltemos ao foco da minissaia, que é assunto mais agradável que as coxas de outrem. O fato é que ainda nos anos 80 lembro dela causando certo escândalo e sensacionalismo em nossa imprensa, embora no exterior ela já tivesse se consolidado muito tempo antes. Em 1972, até o conde Drácula mergulhava de cabeça na minissaia com o filme clássico da Hammer, estrelando Christopher Lee como Drácula e Peter Cushing como Van Helsing, é claro, que por aqui ganhou a bela tradução de “Drácula no Mundo da Mini-Saia”. Aliás, nosso Zé do Caixão não deixava por menos por aqui e não faltavam minissaias em seus belos filmes da época.
A minissaia padeceu dos males da moda. Ao invés de se fincar como tendência irreversível, foi só mais um modismo que passou e pouco se vê pelas ruas, retirou-se ao ambiente de boates. Quando por sorte avistamos alguma na rua, geralmente carrega consigo as marcas de época de quando esteve no auge, isto é, a pessoa que a usa é porque foi jovem nos anos 60 e ainda hoje recorre ao velho vestido de guerra. Se já se tem a dificuldade de a portadora da mini-saia normalmente estar acima dos cinquenta, acresce ainda nestes tempos de carnaval que a maioria das pessoas com minissaia é homem.
Tristes tempos esses em que até o carnaval foi vítima do retrocesso nos costumes e já não se vê mais seios à mostra nem gente sem roupa dançando na rua ou passarela. Foi algo que perdemos no caminho, a perda daquela inocência alegre de andar sem roupas. A ir nesse ritmo ficará melhor o Mardi Gras, o carnaval de Nova Orleans, onde se consolida a tradição de levantar a blusa por um colar de contas.

24/02/2011

Aproximações

Eu sempre duvidei da minha timidez porque, afinal, eu tinha certo sucesso em conversações. O medo e ansiedade estavam lá, mas eu conseguia conduzir a conversa para zonas de interesse que me deixavam mais confortável. Só com o tempo entendi que tais estratégias de manipulação eram parte da doença.
Ao longo da minha vida, essa ansiedade social foi mais particularmente danosa no trato com mulheres. Há diferentes níveis de intimidades que se pode alcançar até o momento definitivo de se atacar a presa, com diferentes atividades correspondentes para cada nível. Uma coisa é estar na balada e ir chegando e conseguir a garota, outra situação é passar meses indo na livraria até agarrar a livreira, ou tentar marcar um encontro com aquela prima do cunhado do seu vizinho.
Foi numa dessas que comecei a tentar de tudo para me envolver com Jéssica. Eu pensava em mil tentativas, mas sempre surgia um porém. Até me enchi de coragem e a convidei para sair, ir a um bar. Ela aceitou, entendendo que ia uma turma junto, não como um encontro, e tive que me virar para tentar conseguir uma turma que acompanhasse e, no fim, acabei tendo que desmarcar tudo.
Longe de aprender a lição, achei que deveria declarar-me logo para ela. Por e-mail, é claro, que seria a maneira mais covarde de fazê-lo, pois cara a cara eu jamais teria coragem. Mandei a ela então um gigantesco e-mail recheado de metáforas do amor que eu sentia por ela e de como eu pretendi levar nossa a vida a dois como um grande projeto conjunto.
Eu estava certo da perfeição superior daquela minha proposta e foi grande a minha surpresa quando ela me retornou, no mesmo dia, explicando que a Darlene e o Santos tinham um projeto similar e que eu devia contatar eles. Não entendi de início, será que eu fora tão rebuscado que ela não entendera meus reais sentimentos expressos ali, ou se tratava de alguma forma de relacionamento grupal em andamento?
Entrei em contato então com Darlene e Santos, usando de linguagem dúbia para caso tudo não passasse de um mal entendido. Eles me convidaram para um encontro para interrelacionar nossas propostas e eu já não conseguia entender mais se se tratava de uma reunião de negócios ou uma orgia.
No dia marcado eu estava lá, tenso, nervoso, quase sem ar. Elaborei minha estratégia de negociação e entrei na sala tentando fingir ânimo e espontaneidade, concordando com tudo que diziam. Só o que me importava era Jéssica. Não lembro o que houve, mas, de alguma forma, saí de lá com um emprego.

18/02/2011

Do imenso pacote de...

Eu fico impressionado como sempre vem à tona, novamente, uma teoria de fim iminente do planeta. É claro que o planeta vai acabar, em alguns bilhões de anos o combustível solar vai estar nas últimas e a vida na terra já era, mas até lá temos tempo de sobra para colonizar outros planetas. E isso não é uma possibilidade, é um imperativo. Minha felicidade é que a missão espacial Kepler já encontrou 5 planetas iguais à terra em uma varredura em cerca de 150 mil estrelas, o que quer dizer que as condições para a vida são extremamente abundantes no universo, cerca de um planeta agradável para a vida terrestre a cada 30 mil estrelas, e existem bilhões delas lá fora.
Enquanto isso, aqui na terra, continua o lenga-lenga de que vai acabar tudo. Estamos nos tornando exageradamente supersticiosos, outro dia porque um bando de aves morreu os caras já começaram a se apavorar. É um sintoma desses nossos tempos de religiosidade nova era, que é basicamente uma espécie de fast food das religiões. Numa religião normal o sujeito se vê forçado a um pacote fechado, se ele quiser fazer sexo com preservativo e tomar a pílula, então terá que mudar da religião A para B. Mas daí na religião B ele não poderá comer linguiças defumadas e terá que mutilar o pênis do seu filho. Então ele muda da religião B para C, mas na religião C ele não poderá beber álcool e terá que mutilar o clitóris de sua filha. Então ele muda para a D, mas então terá de virar vegetariano e incinerar estrume de vaca na casa para efetuar a purificação através do animal sagrado.
É uma coisa terrível, o sujeito moderno fica perdido, precisa ficar mudando, pulando de fé em fé até tentar encontrar uma em que o pacote de dogmas não lhe seja tão insuportável. É por isso que o brasileiro se diz cristão, frequenta terreiro, vê espíritos e acredita em duendes e discos voadores.Com a nova era tudo fica mais fácil, você rasga o pacote das religiões e vai pegando o que lhe convier de cada uma. Se você quer sexo, pega a doutrina sexual do tantrismo e descarta a parte de jejum e meditação, já para as simpatias domésticas, pega as rezas de outra e descarta o resto. No fim você tem um retalho que não chega a ser exatamente nenhuma religião e, o melhor, você pode abandonar cada dogma uma vez que ele se torne incômodo pra você.
Mas o problema é que isso também não funciona, e logo o sujeito chega numa escolha: ou joga no lixo todas as crenças, ou logo está louco, por aí, anunciando o fim do mundo. E pelo visto a maioria acaba caindo na última opção.

03/02/2011

Machadices

A tinta da melancolia não é difícil antever, é um sublime louvor ao nosso ilustre finado. Ruínas dos tempos que a imaginação dessa senhora também voou, porque esse talento me hão de reconhecer os hábeis. Assim a minha idéia mor, e foi então que imaginou as trezentas cubas mouriscas com os seus caprichos de dama elegante. Excelso espetáculo que um homem pode sentir a dor que o punge. Nenhum de nós expeliu o passado.
Talvez eu exponha ao leitor, em algum canto deste doce. Eu estava só, em casa, com um simples enfermeiro; vi-a falar com desdém e um pouco de indignação da mulher impressa num volume, encadernada em marroquim, com fechos de prata: reflexões de cérebro enfermo, uma concepção de alienado, isto é, uma cousa vã.
Comecei a andar, não sei bem quando, mas antes do tempo. No caminho, a planície voava debaixo dos nossos pés, até que, nem a imaginação nem a ciência, e o seu cortejo de sistemas, brincava à porta da alcova. Queria entregar a casa, e a dona não cedia da intenção de tomar o método, sendo, como é, uma cousa indispensável, todavia.
O animal de uma escrava sentou-se. Terça-feira de março, dia claro, luminoso e puro. Não tivemos uma vida comum porque me negara uma colher de educação. Tinha garbo o traquinas, e gravidade, certa magnificência. A consumação das senhoras presentes não pôde calar a sua grande admiração. De quando em quando um riso esperando que fosse a última, mas não era.
Não sei nada; sei que desci, quebrei a cabeça dos modernos, entrei a sacar sobre a herança de meu pai, a assinar obrigações. A verdade é que Marcela não possuía a inocência. Reclinada na marquesa, continuou a falar daquilo, conchegou-me ao seio e sacudiu-mos na cara.--Vês, peralta? é assim que um moço deve zelar.
Depois, levantou-se, sacudiu o vestido, ainda molhado, e caminhou, ergueu metade do corpo, e, apoiada num cotovelo, olhou com um sistema inteiramente superior ao sistema usado. Às vezes parava, erguia ao ar as mãos na poesia e sussurrou-me baixo: Que importava a mim o destino de uma mulher tísica, cabelo arrepiado e longo?
Falei-lhe dos versos, que me lera, o naturalista, literato, arqueólogo, banqueiro, político que morreu alguns anos depois. Diziam que era avaro.
Toda a má impressão se desvaneceu, confessou-me que era uma velha e essa circunstância era-lhe infeliz. Expirou dentro de alguns segundos. A natureza é às vezes um imenso escárnio, a morte não tinha a compostura da mulher casada.

02/02/2011

Eu monstro meu

Não sei como às vezes me entedio em meio ao orgasmo contínuo de notícias sensacionais nos dias correntes. Desde a invenção do transistor e baterias de papel ao último porre de Charlie Sheen, chega um ponto em que todos os jornais parecem vazios e as coisas desinteressantes e até mesmo nossa cara teia mundial parece já esgotada, com seu eu tivesse, de uma só tacada, lido todos os seus 5 mil Petabytes, ou meros 5 Exabytes (e crescendo).
A literatura é a única chance de salvação da enxurrada de informações. Fico me agarrando ao texto de autores mortos, tentando destrinchar, analisar, descobrir porque aquelas combinações tão efêmeras de palavras fazem um treco tão bom. Fico tentado a criar meu próprio monstro junto os melhores trechos de história de autores como Kafka, Dostoievski e Poe. Algo que eu jamais faria, é claro.
Isso porque, certa manhã, ao despertar de sonhos intranquilos, vi-me transformado num gigantesco inseto. Era começo de julho, num tempo extremamente quente e caminhei devagar, rumo à ponte, precisando esgueirar-me pelos degraus da pensão para evitar encontrar com a dona da casa. Porém, quando ela ousou insultar-me, jurei vingança. Não deveria apenas vingar-me, mas vingar-me impunemente.
Esse pensamento, no entanto, logo se dissipou flutuando entre divagações e fastios de uma mente entediada flanando por aí. Pensei nas grandezas estelares e lembrei que o conceito já não era mais usado há alguns séculos, pois o brilho que vemos de uma estrela aqui na terra não é indicativo do seu tamanho, uma vez que temos que levar a distância em conta. Sem falar nos buracos negros, nos centro das galáxias, invisíveis, porém com uma massa gigantesca. E nenhum buraco negro terá um dia grandeza maior que aquele de Bobbi Starr.
Acalentei-me então com estes pensamentos enquanto os últimos fios de luz solar se extinguiam na superfície da cidade e as sombras alongadas davam vazão ao alongamento passional de uma melodia mental. Não! Era algo que eu certamente jamais faria, uma palavra sequer, muito menos uma frase ou sentença de qualquer mestre literário, jamais eu ousaria usá-las e me apropriar delas, como um ladrão barato que toma dos outros a roupa no varal e as sai usando. Essa determinação me deixava no problema de faltas de palavras a usar, ainda assim minha decisão era irrevogável.
E foi por isso que me levaram à pedreira e me esfaquearam, como um cão, eu disse, e minha sombra, daquela sombra, se soltará nunca mais.

27/01/2011

Meu amigo Gandi

Eu vi isso no meu avô pouco antes de ele morrer: o mundo, de certa forma, perdera o sentido para ele, todos seus amigos e boa parte de sua geração não existiam mais, o mundo em que ele vivera estava extinto e ele vivia deslocado no nosso mundo.
Eu achei que ia demorar ainda uns dez anos para eu começar a viver o mesmo drama, mas aos poucos eu também entrei no filão de enterrar os amigos, rumo inevitável a não ser que a gente seja o primeiro da fila a bater as botas (e eu sempre achei que seria). Há alguns anos foi uma amiga, com câncer aos trinta anos. Agora, como confirmação do rumo inevitável, outro amigo, ainda com trinta e poucos, num incidente envolvendo uma cobra, uma poça de água e uma descarga elétrica inesperada.
O fato é que sou um frouxo e não consegui resistir à pressão quando o velório começou a encher e encher mais na madrugada quente. Eu não estava servindo de muito consolo para a família e me sentia intimidado pela presença cada vez maior de pessoas, a grande maioria que eu nem conhecia.
Fui para casa achando que não ia dormir, mas acabei apagando e tendo um sonho. Com o defunto, é claro, que não me saía da cabeça. Nele, o Francke tinha reaberto seu bar, só que agora no centro da cidade, ao invés da Lagoa. Então eu saía do velório e ia para o bar e ficava lá bebendo e pensando no falecido, quando decidi dar uma volta.
Saí do bar ali pelo Largo da Alfândega e tomei a Conselheiro Mafra, destinado a ir até a loja de jogos que eu costumava frequentar com o morto. Lá, para minha surpresa, encontro a loja semi-aberta, no meio da madrugada, com um aviso na porta de ferro dizendo que estavam em luto. Bem, acho que já souberam da notícia, eu penso.
Ouço um barulho de passos do outro lado e alguém erguer os ferros e, para minha surpresa, sai o amigo defunto caminhando lá de dentro, com a mesmo roupa que eu o vira no caixão algumas horas antes. Como? eu pergunto, e ele me explica que tudo fora um engano, um sósia dele que passava por acaso e entrara em sua casa, morrendo no quintal e sendo confundido com ele por parentes e amigos, enquanto ele tinha ido dar uma volta na praia de depois um pulo na loja de jogos. O luto na loja era por um tio árabe dos donos.
Impressionado com a explicação eu o convido para ir ao bar tomar umas geladas e acordo. O silêncio da noite abafada estava lá, no escuro, confirmando para mim incoerência do sonho. O que mais me impressiona é a capacidade de nossas cabeças trabalharem contra nós mesmos maquinando a negação daquilo que não desejamos.

18/01/2011

A castração química de Thomas T.

Tinha esse amigo que era o mais empolgado de todos os caras, sempre disposto a ajudar a carregar alguma coisa, organizar um grupo de pessoas ou o que quer que precisasse ser feito. Ele sofria de uma ânsia incomum por movimento, uma compulsão em ver tudo agitado e caía em profundo tédio quando o ambiente estava por demais parado.
Thomas também não conseguia se aguentar ao ver qualquer mulher, ele logo a cercava e assediava por horas a fio, normalmente sem muito sucesso. No desespero por conseguir parceiras ele aprendeu diversas danças eróticas e técnicas sexuais avançadas em cursos pela internet. Era consenso entre todos nós que o que ele realmente precisava era de uma boa castração, que o deixaria mais calmo, menos afoito.
Mesmo com todo empenho ele, quando raramente arranjava uma mulher, não conseguia mantê-la por muito tempo, pois elas logo o abandonavam reclamando de suas manias estranhas como uivar pra lua, ou pedir para a garota subir no telhado ou tocar um trombone enferrujado.
Chegamos a comprar, então, algumas ampolas de Acetato de Medroxiprogesterona, que é muito usado não só por homens que fazem a mudança de sexo para serem mulher, e são dez mil pessoas que já fizeram a cirurgia no Brasil, como também para a castração química de meliantes sexuais.
Tudo veio numa caixa discreta endereçada ao senhor Turbando e ele iniciou o tratamento, mas parou quando os pelos dos braços começaram a cair. Então voltou a ser o velho irriquieto incorrigível que sempre conhecêramos e concluímos, por fim, que não haveria cura.
Para nossa surpresa o encontramos quando saímos numa noite pela cidade em uma busca infrutífera por qualquer bar aberto depois das duas manhã. Como não era fim de semana e Floripa há muito já decaíra daquele auge dos anos 90, onde podíamos contar com um bar 24h aberto do lado de casa, não achamos nada e acabamos parando numa ruela para descansar. Era três horas da manhã e ele vinha andando com um cachorrinho minúsculo, que sentira súbita vontade de urinar no meio da madrugada. Estava assombrosamente calmo, falava devagar, não sabíamos se oprimido pelo sono ou potente medicação. Então nos contou que casara, e a mulher foi aos poucos ocupando a vida e a casa dele, o armário do banheiro, a cozinha, a sala, aquilo que ele devia pensar, até que ele se reduziu a um mero fantasma. Foi aí que descobrimos o grande poder do casamento, a mais antiga e tradicional forma de castração.

13/01/2011

Esforço

Estava quase conseguindo quando vem aquela batida na porta: “Fonjic, Fonjic! Anda logo, quero usar o banheiro também!”. Senti a concentração desabando. Todo o esforço perdido e teria que recomeçar tudo de novo. “Calma, tô quase acabando”, menti.
No calor, o suor me escorria já pelas têmporas e a imaginação não colaborava comigo dando asas a longos devaneios. Viagens de férias, memórias de juventude, estatísticas furadas, tudo vinha como um jorro.
Lembrei da vez em que fui comprar um imóvel e encontrei um lugar cheio de bolor nas paredes, cheiro insuportável de mofo, paredes embolotadas e pintura estufada, pedaços de concreto faltando numa viga acima de nossas cabeças que sustentava todo o prédio acima. A corretora foi gentil comigo e me poupou do constrangimento dizendo ela mesma que se recusava a vender um imóvel assim. Fomos embora e fiquei dois dias me coçando por causa de algo naquele ar. Notei os arranhões na porta de entrada e não pude deixar de pensar que o antigo morador fora morto por algum acerto de gangue ou algo assim. Era o imóvel mais barato da cidade e ainda assim eu precisaria de empréstimo, uma vida inteira se ferrando e nem um cafofo infecto daqueles eu tinha dinheiro para comprar. Ainda hoje me dá coceiras e medo ao lembrar do lugar.
Nova batida na porta. Nova mentira. Novo início.
Na vida moderna sempre tem alguém batendo na porta. Ou telefonando. Ou mandando email, tuíter, vendendo tapoé ou recolhendo longuinetes, seja lá o que quer que fossem isso.
Lembra, meu amigo, quando as coisas eram mais simples? Quando podíamos nos jogar pro meio do mato depois da aula e ficar lá bebendo e contando histórias de terror, e depois você acordava apavorado, sozinho no escuro, gritando para que fôssemos te socorrer porque a menina da faca estava por lá para te pegar? Ou quando o doravante chamado Roosevelt desmaiou ao avistar um de nós coberto com um lençol se fazendo passar por fantasma?
Ah, eram tempos ridículos aqueles, eu sei, mas ainda assim cheios de vitalidade e energia. A juventude é um fonte inesgotável de dor, sofrimento e alegria, tudo ali misturado e muito intenso, a qual passamos o resto da vida tentando retornar, como um fumante de crack buscando repetir a euforia da primeira fumada, morrendo rapidamente nessa busca.
Novamente a batida da porta. “Anda logo Fonjic, porque a demora? Não está com uma das suas revistas aí, não?”. “É claro que não, me deixa em paz”, respondi, escondendo instintivamente a revista.

06/01/2011

Bons tempos (5)

Naquele verão de 1997 descobrimos que a mulher perfeita morava em nosso prédio. Voz suave, pele morena, busto generoso, pernas compridas, quadris arredondados e... é melhor parar por aqui antes que me empolgue. O melhor de tudo é que ela vivia no apartamento em cima do nosso e Washington, que não morava lá em casa mas fora passar o fim de semana e já lá estava três meses, na hora ficou doido pela menina.
Quer dizer, todos nós ficamos doidos por ela, mas ele decidiu que não podia esperar, tinha que bolar um jeito de se aproximar urgente. Vimos ela pela primeira vez no pátio do prédio, com roupas suaves de verão, havia esquecido das chaves e gritava para a colega de quarto: “Jaci, joga as chaves! Joga as chaves!”
Washington, de fato, não demorou para maquinar um plano e botar em andamento. No dia seguinte tomou banho, se perfumou, procurou na lista telefônica e ligou para o andar de cima se fazendo passar por alguém que ela conhecera numa festa, sob o nome falso de Roosevelt. Ficávamos apenas escutando o que ele dizia e rindo, com a certeza que o treco não iria dar certo: “Oi Jaci, tudo bem?... como assim quem é, não lembra de mim?... não reconhece minha voz?... é o Roosevelt, nos conhecemos naquela festa, lembra?... pois é, a gente tinha bebido um monte e você nem lembra?... eu queria te rever, onde você mora?”.
A cara de pau com que ele ia inventando desculpas e dando em cima da garota era um feito épico, e ríamos no chão ouvindo tudo quando, para nossa surpresa, ele não só tinha conseguido convencer a garota daquela farsa toda, como ainda marcara um encontro em meia hora na casa dela.
Foi a meia hora mais longa do mundo. Por fim ele saiu de casa, foi até a esquina e voltou caminhando, como quem não conhecesse o lugar. Tocou o interfone dela. Ela atendeu e pediu que ele ligasse pro pessoal debaixo porque o aparelho dela tinha defeito, de forma que, por ironia, ainda fomos nós que abrimos para ele entrar.
O encontro transcorria lá em cima já há bastante tempo quando bolamos a sacanagem. Ligamos para ela dizendo que éramos amigo do Roosevelt e ele tinha deixado o número dela para ligarmos, pois a esposa dele estava na maternidade e ia dar a luz.
Logo ele saiu e fomos encontrá-lo para rir dele, mas descobrimos que nossa sacanagem, na verdade, o salvara, pois ao invés de marcar o encontro com a musa, ele marcara com sua colega de quarto, Jaci, cujo nome ele ouvira e gravara achando ser dela, e não desfrutava nem um pouco daquelas belas qualidades.

04/01/2011

O fim de uma década

É aí que você se toca que está acabando a primeira década do século e do milênio e decide dar algum significado a isso. Por um lado foi a década em que o país saiu do atraso e ganhou um rumo, ajudado pelo bondoso bônus demográfico, que sugere mais umas boas décadas pela frente. Por outro, você percebe que não tem muito sentido celebrar uma efeméride cronológica, afinal, a rigor, a mudança da meia-noite é exatamente igual a qualquer mudança de um minuto para outro.
Mas aí você percebe que a grande sacada é isso mesmo, o mundo e a vida não existe com um destino ou objetivo traçado à priori, não existe por fruto de planejamento e você, ser humano moderno, não precisa rastejar temendo forças invisíveis, tem o poder de decidir seu destino e o interesse ou não de criar uma sociedade onde todos possam desfrutar de uma vida melhor. Portanto se você decidir celebrar a virada de ano, é um bom motivo para festa como qualquer outro, então por que não?
Aí você resolve fazer como os gringos e criar uma lista de resoluções de fim de ano, promessas a si mesmo de coisas que não fará ou fará no ano seguinte. Depois de intenso debate com as vozes internas de seu cérebro você assume três compromissos para o ano que vem: não irá mais rolar bêbado no chão, não irá flertar com a mulher do chefe se ela usar decotes, como na última vez em que foi demitido, e não dará mais vexames em festas.
O único senão em sua lista é que todos os itens estão na negativa, começam com um não. Mas então você se lembra de Axel Honneth em sua gramática moral do conflito social, da forma como ele advoga que toda a negatividade é, por fim, geradora de um conflito que, se resolvido, instaura uma nova positividade, superior àquela anterior. Ou seja, a negatividade é a própria forma pela qual as pessoas, ao se verem negadas como sujeitos plenos, entram em conflito com o outro, negando com isso também a integridade moral daquele outro até que, pelo reconhecimento mútuo, as partes cheguem por fim a um novo patamar.
Como um meme voraz essa idéia sedimenta a decisão em seu cérebro e você parte enfim despreocupado para a festa de fim de ano. Será o melhor ano de sua vida e você bebe até cair no chão e não conseguir mais falar direito. Aí vem aquela mulher incrível que seu chefe desposou e você ataca ela, logo depois subindo na mesa para uma dança sem roupas.
Você acorda no dia seguinte numa cela, de ressaca e sem emprego. Não foi dessa vez que você cumpriu as resoluções. Mas, quem sabe ano que vem...