É assustador tentar desdobrar em quantos níveis ficcionais se divide uma obra de arte. É como se cada obra possuísse um obra dentro de si, que possui outra, mais outra, mais outra, assim por diante. É preciso partir ao meio essa mamuska infinita para esticá-la numa linha, ou num plano e definir critérios condicionantes do real, e aí apontar num gráfico quais estão suspensos ou rasgados pela obra e quais estão mantidos.
Um exemplo mais concreto do que eu falo é quando estamos na melhor parte do filme no cinema e o cara da poltrona do lado reclama:
--- Porra, que merda, o cara nunca que ia conseguir pular 3 metros pra pegar aquela machadinha!
No entanto, o fato de que o cara está lutando com um monstro alienígena, formado em marte a partir de uma barra de chocolate esquecida lá por astronautas da terra mil anos antes, passa completamente desapercebido. Porra, o cara está lutando contra um monstro alienígena mutante do chocolate e o cara está preocupado com a verossimilhança na distancia do pulo do mocinho. Diabos. E quando você o ofende ele ainda reclama.
Mas tais fatos são perdoáveis. São parte inseparável de uma obra de arte ocultar ou revelar a seu público quais condicionantes do real estão mantidos e quais foram suspensos. Na verdade a maioria dos filmes ruins faz exatamente isso, guarda uma dessas variáveis para o final para surpreender o telespectador com uma fuga impossível para o herói, que exclama para a mocinha:
--- Ó querida, veja, este saca-rolhas que você me deu serve também como arma anti-zumbis!
Mas por pior que seja monstro, zumbi ou vilão que possa aparecer numa história, nada é mais chato do que mala de bar. E em especial um tipo moderno: o pitboy metrossexual.
Eu tentava me concentrar no balcão do bar em um problema insolúvel quando um desses tipos apareceu. Eu tinha comprado um filtro numa loja, mas o filtro era uma bosta, a água saía amarela. Voltei na loja e troquei por um filtro mais barato e uma torneira de vinte pila. O filtro mais barato funcionou que era uma beleza, mas só depois de rasgar o pacote da torneira eu reparei que não precisaria dela. Como a torneira custava vinte pila e a viagem de ônibus custava três, eu precisava decidir se valia a pena ir ao centro pelo terceiro dia consecutivo, agora para trocar a torneira por outra bugiganga qualquer.
Sem nenhum respeito pela minha privacidade e necessidade intelectual de solidão para resolver esse dilema, o fulano me abordou. Era quente como o inferno e nem o Bigode, garçom que aliás não tinha nenhum bigode, dava conta de trazer cervejas suficientes. O cara era tão mala que tinha uma camiseta escrita “eu sou macho” em letras garrafais. Não fosse isso viadagem suficiente, ainda era camiseta de moda, da grife de um roqueiro qualquer... que era melhor em tocar metal do que como costureiro de luxo.
Puta que pariu, nessas horas eu sentia saudades do Frank, criatura lendária que, segundo a tradição, criara no passado o melhor bar do mundo bem aqui nesta cidade. Misto de Ícaro com Prometeu, derreteu as asas de cera ao dar o fogo aos homens e com isso o bar fechou e a humanidade voltou para as trevas.
Mas enquanto eu devaneava sobre esta lenda o mega-mala já tinha me contado metade de sua vida sexual. O tamanho de sua benga, os remédios que tomava para deixar ela de pé por mais tempo, o número de mulheres que já comera entre uma sífilis e outra e assim por diante. Eu falei pra ele:
--- Garoto, me escuta, não adianta medir a quantidade, se a quantidade não gerar qualidade. É a primeira lei da dialética, logo antes da interpenetração dos opostos.
--- Ihhh... sei não, isso ta me cheirando a papo gay. Por acaso você é uma daquelas bichas filosóficas?
--- Escuta, moleque. Sei que não te ensinaram nada na escola, mas tem certas coisas que um homem tem que aprender. Um amigo meu, por exemplo, é que é sortudo, conseguiu ter a melhor noitada da vida e não comeu ninguém.
--- Ah, agora você ta me sacaneando, isso é papo gay que eu sei.
--- Te acalma, xucro, ouve só. O cara descobriu um inferninho em barreiros, nos limites da cidade, que tem a tal da esporroleta.
--- Esporroleta?? Mas... que é isso?
--- Saca só, o cara paga mil reais por cada sessão. Ele tem que entregar o dinheiro em espécie pra cafetina e depois é levado pra uma salinha nos fundos, guardada por dois baita leão-de-chácara. Lá seis garotas de biquíni se trancam com o felizardo, despem o cara e amaram as mãos e pernas dele. Em seguida amaram três tiras grossas de borracha do teto até os pés dele e o erguem de cabeça para baixo. Esticam-lhe os braços e amarram mais três tiras de borracha até o chão. Sobem todas num nível móvel de forma que o coiso do cara fique na altura exata do nariz delas. Começam a girá-lo, cada vez mais e mais, forçando ao máximo a tensão da borracha. Quando acabam o sujeito já está completamente excitado, não só por ficar vendo elas daquele ângulo, ou sentindo as mãos delas sobre ele, mas também por causa do sangue todo na cabeça. E aí, bem nessa hora, elas soltam. O cara volta girando a toda velocidade, com o pau batendo no nariz de cada uma a uma velocidade altíssima. Quando a borracha se desenrolou toda começa a se enrolar sozinha para o outro lado, até que novamente pára e inverte o giro, voltando novamente para uma seqüência de várias voltas com o monstrengo batendo nas belas napas femininas. O treco repete esse movimento umas cinco vezes e dura no máximo uns três minutos, mas diz que não tem ninguém que não se esporre todo na metade disso, voando porra para todos os lados.
Dei uma pausa para ver o que o sujeito dizia, mas o silêncio era total. Não só do meu interlocutor, mas também nas mesas em volta, que haviam parado para ouvir. Tenho que me lembrar de não falar tão alto depois que bebo, pensei.
--- Aí, continuei, acabada a esporroleta, desamarram o cara, as meninas se enxugam com uma tolha, o cara se veste e vai embora contente e o próximo entra. Agora, sabe o que é o melhor de tudo? Segundo esse amigo, o melhor de tudo foi ter pago mil reais por isso.
--- Não, pêra, lá, isso não faz sentido.
--- Não é sério.
--- Porra, se fosse de graça seria bem melhor, não?
--- Segundo ele não...
--- Se bem que por mil reais dá uma graça a mais, uma certa exclusividade na coisa... será que é isso?
--- Não sei, garoto, isso eu vou deixar para você pensar. É seu dever de casa para hoje.
Levantei, fui até o caixa, paguei a conta e saí, acenando um adeus com a cabeça para as pessoas das mesas que queriam saber mais sobre a esporroleta e o endereço do inferninho.
Talvez, com um pouco de sorte, eu consiga achar algum amigo que esteja precisando de uma torneira de cozinha, pensei, assim não vou ter o trabalho de continuar me incomodando com isso.
Seria sorte demais, pensei, e apressei o passo para chegar logo em casa e me aliviar no banheiro.
27/04/2004
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