05/02/2010

Cuecas ao mastro

Começou quando conheci esse militante comunista chamado Guaratinga, com dois metros de altura e muito negro, apesar do nome indígena. Ele morava com sete mulheres, uma delas de nome complicado que sempre nos exigia que a chamassem pelo sobrenome germânico dela, Irrekuh.
O fato é que foi Guaratinga quem acabou me apresentando Irrekuh, de longe a mulher mais louca que já conheci. Vinha de alguma pequena colônia de imigrantes do meio do estado e alternava de ânimos de uma forma selvagem. Num segundo estava pulando e cantando e rindo loucamente no meio da multidão na rua, para momentos depois, sem nenhuma causa conhecida, se jogar no chão em prantos e lamentos terríveis, acompanhados de espasmos abdominais e pélvicos. Às vezes ligava uma manhã inteira falando com alegria de uma festa para ir e quando ia à festa começava a chorar e transformava a ocasião num claustrofóbico e pesado velório.
Talvez a loucura de Irrekuh foi o que mais me animou a simpatia instantânea que por ela logo nutri, muito embora seus dotes físicos eram o que normalmente chamavam mais a atenção dos outros. E como ela percebeu logo que encontrara em mim um receptáculo passivo de qualquer tipo de loucura, logo começou a freqüentar minha casa e tornar-se amiga próxima.
Eu nunca soube se ela apenas encontrava em mim um lugar para despejar suas loucuras em busca de alívio ou, pelo contrário, me via como um desafio a ser quebrado, aumentando cada vez mais o grau de suas loucuras, até que eu mesmo não mais suportasse. Sejam lá quais forem os motivos, é verdade que ela me proporcionou os dias mais felizes e tristes ao mesmo tempo que já conheci, tamanha a oscilação dela durante o dia, que acabava por me arrastar.
Ela costumava a vir diariamente e pedir-me se podia tirar a roupa, pois estava muito quente. Eu dizia que sim e me alegrava em vê-la andando sem roupas o dia inteiro pela casa, embora fingisse não ligar para isso. Não era algo com maldade ou erotismo, mas sim uma espécie de acabamento perfeito para o lar, algo para se ver, como uma janela com vista para o mar. Em seguida ela me contava todas suas alegrias e tristezas com seus três ou quatro namorados da vez e me pedia conselhos, que eu nunca dava.
Depois pedia uma muda de roupas minha e ia embora, com especial preferência pelas minhas cuecas. E foi assim que Guaratinga encontrou uma delas no varal de sua casa e até hoje a usa, sem saber que era minha. Eis aí minha valiosa contribuição à causa revolucionária!

Sonhos

Meu amigo Sarlie me lembrou outro dia da história de controlar sonhos. É algo muito interessante de se fazer e uma experiência realmente gratificante. Tem até uns malucos no Havaí que montaram uma escola para as pessoas treinarem controle dos sonhos.
O sono, longe de ser um período de cérebro desligado é um dos períodos de maior atividade cerebral e várias vezes consegui resolver problemas que me incomodavam há dias durante o sono, de tanto que pensei neles antes de dormir. De fato, o sono é um dos melhores momentos para resolver problemas complicados pois o cérebro está completamente dedicado a tarefas abstratas, sem interrupção de barulhos e imagens do mundo externo, isto é, completamente concentrado.
Minha habilidade em controle os sonhos, no entanto, veio dos sonhos recorrentes. Começaram no início da adolescência. Em princípio era o colégio que eu estudava e odiava que sempre desabava e eu morria. Fiquei anos sonhando com aquilo e aprendi ali a controlar o sonho e fugir para lugares diferentes em cada sonho, depois de umas quatro ou cinco vezes em que eu morri soterrado no banheiro. Por fim, um dia consegui fugir antes do desabamento e nunca mais sonhei com aquilo de novo.
Então vieram os sonhos recorrentes bons. Meu favorito era aquele em que eu ficava preso com centenas de mulheres lindas na ilha do topless. Eu sonhava aquilo noite após noite, sempre encontrando mulheres diferentes e mais lindas que as anteriores. Foi o melhor período da minha vida, apesar da tristeza que era em ter que acordar e abandonar as mulheres sozinhas naquela ilha em orgias solitárias. Sem falar no banho que eu precisava tomar quando acordava para me livrar de vez do sono e das roupas meladas.
Mas então a adolescência foi acabando e a juventude se esvaindo e esses sonhos rareando, de forma que agora são só pesadelos com cidades ciclópicas lovecraftianas e alegorias enigmáticas. No mais comum deles estou eu curvado sobre o teclado de meu computador, com o corpo inclinado, quase me fundindo à máquina. Meus dedos batem rápidos nas teclas e com força e durante horas a fio estourando a pele e os vasos sangüíneos, encharcando de sangue o teclado, a mesa e o chão.
E por mais que eu digite nunca posso parar pois atrás de mim está a morte, com seu manto puído embolorado e seu corpo de ossos com um chicote na mão a açoitar minhas costas mandando que eu acelere e digite mais e mais e mais. Então me envergo ainda mais e sigo no tormento sem fim.

às vezes não dá

Encontrei ela no supermercado e ela disse: estou brava com você! Eu não sei porque isso me surpreendia uma vez que ela sempre dizia algo assim parecido, embora eu não lembrasse ao certo por que o namoro havia acabado.
Eu li algo que você escreveu no jornal, ela disse, e era sobre mim. Meu bem, eu disse, tudo que eu escrevo sempre é sobre você. Ela corou um pouco e depois disse: achei que você escrevia sobre as outras. É sempre sobre você e sempre sobre as outras também.
Ela se irritou com a nova resposta e perguntou se eu estava comparando ela com outras mulheres e eu disse que ela não devia ter medo de ser comparada, pois não estava em último na corrida, mas sim naquele bolo que formam os corredores que estão ali no meio da prova.
A resposta irritou ela mais ainda e ela saiu bufando sem se despedir. Parece que sempre foi assim. Lembro dos tempos de namoro em que ela chegava e estava sempre angustiada, ou nervosa, ou irritada, ou estressada ou qualquer coisa tempestuosa. Daí ficava mais de duas horas falando sem parar e reclamando da vida e de tudo e de todos e eu lá já sem esperança de conseguir alguma atividade sexual naquela noite, até que ela finalmente amaciava a vinha para mim. Um dia eu disse a ela que não adiantava ela me dizer tudo aquilo, que eu não tinha interesse nas frustrações e angustias e dúvidas e raivas dela, que apenas me interessava que ela soubesse o que queria da vida e fosse em frente. Ela ficou muito irritada com aquilo, disse que eu só pensava em sexo e da importância de compartilhar.
Daí eu disse que ela podia compartilhar à vontade, mas isso não mudaria nada, pois eu não iria esmurrar o chefe dela para ele lhe dar um aumento, ou esmurrar o pai dela para lhe respeitar, ou esmurrar o padre dela por ter mentido durante tantos anos nem esmurrar ela para aprender a parar de se lamentar e tocar a vida, de forma que ela podia compartilhar o quanto quisesse que isso não serviria para absolutamente nada.
Ela ficou muito triste naquela noite e nossa vida sexual minguou de vez até que ela disse que contava tudo para a mãe dela, uma senhora minha vizinha que me conhecia desde criança e foi aí que o relacionamento acabou de vez. Eu não podia suportar aquela senhora sabendo tanto da minha vida sexual.
Aí, depois de um tempo do evento no supermercado escrevi uma série de crônicas sobre os cães de rua. Ela ficou furiosa e me perguntou se aquilo também era sobre ela. Meu bem, eu disse novamente, tudo que eu escrevo sempre é sobre você. E nunca mais nos vimos então...

Derretendo

Eu costumava a suportar bem os verões, adorava mesmo a época, mas esse ano ou estou doente ou o calor está demais. Lembro de já ter pego quarenta graus aqui muitos anos atrás e não parecer tão ruim. Acho que desacostumamos do calor mesmo, depois de um inverno tão ferrado como este último.
Meio-dia e o cérebro começa a derreter. Praguejo contra o ventilador velho que já não funciona direito e saio pra almoçar num ar condicionado. Isto é, num lugar qualquer que seja refrigerado. Entro num supermercado e pego um prato de coxinhas e uma água com gelo até a borda do copo. Fico lá comendo lentamente apenas para aproveitar ao máximo o ar gelado do local.
Tudo mais ou menos bem, até resolver ir no banheiro. Nunca vi um lugar tão lotado. Nem tão sujo. Todos os mictórios ocupados e, pra piorar, um sujeito de tatuagens e topete no cabelo faz poses na frente do espelho pra se arrumar. É a era do metrossexualismo, quer a gente queira ou não.
Depois de mil poses e beicinhos e ajeitadas no topete ele desocupa o local e posso lavar meu rosto um pouco. Não adianta. O calor persiste e resolvo desistir de usar o banheiro que não desocupa e volto para o ar condicionado.
Fico lá zanzando a esmo, até que já passei três vezes por cada seção e sei que é hora de ir. Venho zanzando pela Lauro Linhares acompanhando as placas dos carros, tentando lembrar fatos que coincidam com as terminações. Vejo um carro terminando nos números 0820, e depois de muito forçar a mente me lembro, agosto de 1920, nascimento de Charles Bukowski.
O primeiro foi fácil, olho pela estrada em busca de outro número que me chame atenção. Um carro azul desses que custa cem mil na concessionária passa por mim com a placa 1185. Esse era difícil.
Eu sentia o sol queimando minha cabeça enquanto eu tentava com afinco lembrar uma data que encaixasse. Fico acompanhando o carro que vai no engarrafamento, como se isso pudesse me ajudar. Quando estou quase desistindo eu lembro, novembro de 1985, primeira publicação de Calvin e Haroldo, minha tira de jornal favorita.
Estou lá me felicitando pela lembrança quando vejo o sujeito motorista do carrão jogando seu lixo pra fora da janela. Canalha, porco!
Vejo o boné do motorista e logo imagino um adolescente e me flagro pensando na decadência dos jovens. Daí ele joga novamente seu lixo pela janela e reparo que é um senhor lá pelos setenta anos. Francamente, tanto dinheiro para comprar um carro desses, mas tão pouca educação. Doze palavrões depois e eu volto a andar pra casa.