20/04/2010

Gritos

Eu sempre achei que quando a foice da morte finalmente encontrasse meu corpo e rasgasse minhas vísceras, poupando o mundo de minha presença, grafariam em minha tumba aquele grito que desde a infância instalou-se em minha memória e continua, desde então, lá, ecoando. É o grito de Lucélia Santos no filme baseado em história de Nelson Rodrigues chamado “Bonitinha, mas ordinária”: Cachorrãããããããããããoooo!!!
Aquele grito, dito por aquele rosto, naquela cena... algo inesquecível.
Mas outro dia meu bom amigo Olsen Jr. me mandou outro grito que acho que não vou esquecer nunca, também. Eu já tinha ouvido falar da preciosidade que corria a internet, mas confesso que se não fosse o grande cronista me enviá-lo, eu jamais o teria visto, por pura preguiça.
É uma coisa impressionante mesmo. Começa com o relato da Cidinha Campos digno de filmes de ação narrando a pressa com que veio subindo as escadas esbaforida para tomar a palavra na tribuna. Dito isso começa a elencar todos os crimes e processos contra alguém que acabara de se candidatar ao Tribunal de Contas. É o momento do constrangimento. Algo impressionante. Aquele plenário tumultuado cheio de vozes e murmúrios e barulhos vai se silenciando até se tornar um silêncio trágico, pesado, devastador. Um túmulo recheado de homens vivos, todos fuzilados pela metralhadora verbal dela.
Quando parece que ela vai abandonar o cenário dos corpos e baixar as armas, percebemos que ela apenas trocou o disparo de projéteis pela bomba. É possível ouvir o barulho vindo de longe, crescendo, ganhando força, até estourar e explodir a realidade com sua larga sonoridade: Canaaaaaaaaaalhaaaassss!!!!! Canaaaaaaaaaalhaaaassss!!!!!
É a experiência verbal, teatral, real, mais destruidora. É aquilo que todos sabem, que todos pensam, que todos querem dizer. Mas não é dito como um grito abafado, solitário, escondido no meio da multidão. É um grito que vai se construindo, se formando, se ampliando, até que todo o som do mundo parece recuar antes de irromper, como as águas do mar que recuam subitamente antes da violência devastadora do tsunami.
Eu sei, é claro, que deveria estar falando dos filmes de Hillary Scott ao invés de temas mais mórbidos, mas parece que esse período de abril concentra tanto agouros como o mês de agosto. Dia 19 é dia dos índios, massacrados quase totalmente. Dia 21 a morte de Tiradentes, Tancredo e Mark Twain. E no período de 19 a 21, o massacre de dois mil judeus em Lisboa, em 1506. Eta semana...