31/08/2004

Lady Rocket and the Lesbian Bangeroo Triplet

Era provavelmente a melhor banda de Rock que já vi tocar naquele lugar.
Estou falando é claro do lendário bar do Sangue, que tinha esse nome porque sempre saía alguém arrebentado de lá no fim da noite, que nem era no fim da noite, mas no meio da manhã, propriamente dita.
Mas o fato é que tudo o que resta são ruínas de um passado escrito ao som de choros de bebê. O bar não existe mais, a banda não existe mais e até mesmo as três meninas que compunham a banda já morreram.
Alguns achavam que era uma banda pornográfica ou algo sinistro. Mas não tinha nada disso. A única coisa que rolava é que a meninas tocavam sem roupa e se esfregavam o show inteiro. Mas o show era algo didático, educativo. Lembrava aventuras de RPG, lendas celtas e longas sessões da trilogia de filmes do senhor dos anéis, só que sem roupas e sem o macaco-prego.
Era uma espécie de figuração céltica ou grega. Na verdade personagens que pertencem a várias mitologias: a moça, a mulher e a velha. De todas a mais linda era a moça, embora quem costumasse a agarrar o pessoal da platéia fosse a velha. Enfim, não se pode nunca ter tudo.
A moça tocava bateria como um ser enjaulado. Era cercada de pratos e tambores e os surrava do início ao fim da exibição. Era selvagem. Era roque tocado como deve ser: som alto e mulheres nuas. Infelizmente, é como dizem, e a chama que mais brilha é a primeira a se apagar. Ecstasy, foi o que a necropsia revelou. Uma superdosagem que ferveu o cérebro e pifou os pulmões. Uma morte estúpida e desnecessária. A primeira delas.
Depois foi a guitarrista. A mulher. Toda a selvageria da moça, mas com mais pêlos pubianos. Aliás com mais pelos nas axilas também. E muitos piercings e tatuagens. E aquela praga que só as mulheres conseguem notar e que chamam de celulite. Ou não, porque de fato nunca puder ver nenhuma marca de coisa alguma e desconfio mesmo de que isso fosse apenas um boato criado por alguma feminista católica. Se a moça era bela, a mulher era o auge, dez vezes mais bela, dez vezes mais atitude, dez vezes mais ocorrências de doenças venéreas. Todos nós venerávamos ela. Embora tocasse um violentíssimo punk lesbocore toda noite, era de dia uma pacata funcionária pública que deu o azar de morrer de câncer com vinte e poucos anos. O mero fato de não ter morrido eu ou qualquer um dos escroques que freqüentavam o bar é, por si só, uma prova da injusteza da vida.
A banda já havia acabado. O bar já havia fechado. E o ano já estava suficientemente ruim com as duas mortes quando veio a terceira. A velha, a baixista da banda, de personalidade mais melancólica e contida do que as outras duas, embora apetite sexual exponencialmente maior. Às vezes atacava também no vocal imitando Janis Joplin deprimida, ou, se estava alegre, saía pelo bar agarrando um por um todos os fregueses. É a diminuição da progesterona que, na idade madura das mulheres, faz aumentar a proporção de testosterona no sangue delas deixando-as piscando com vontade de dar por onde puder.
O mais absurdo é que anos de putaria rock-hiponga e ela nunca pegara nenhuma doença venérea. Nada. Nem sequer chato, que era uma praga costumeira naquele bar. Um dia veio um ex-namorado conversar. Beberam um pouco, deram umazinha e pronto, no dia seguinte ela, sem saber, já amanhecera com o vírus. Ela se foi de forma deprimente, apenas mais uma na lista dos atingidos pela Aids. O que fez com que todo o antigo público do extinto bar corresse aos laboratórios em busca de exames. Com a morte da velha, morria também tudo de bom que havia acontecido naqueles shows político-pedagógicos. Era a morte de uma era, não só do bar, mas de todas as integrantes da banda também.
Era fim do ano quando encontrei um amigo de longa data. “Adivinha quem morreu?”, perguntou ele. “Vai se fuder”, eu disse, e me afastei de ouvidos tampados. Já tinha havido mortes demais para mim naquele ano. Para mim elas sempre estarão vivas em minhas memórias bêbadas descritas de forma exata acima. Para os abstêmios, talvez a coisa seja um pouco mais sem-graça.

voltando

É um sentimento de medo ou tristeza que me leva de volta para casa, não sei ao certo.
Tantos anos longe, vivendo de forma inquieta, pulando de emprego em emprego, raramente pensando num retorno ou num tempo para saudades.
Pegue um avião, me disseram, assim você chega mais rápido. Mas havia um medo ou tristeza ou ainda ansiedade que me fizeram preferir o ônibus. É um tempo necessário, um tempo que preciso para remoer velhos sentimentos, matar velhos pensamentos que ficaram abafados esses anos todos e, agora, com minha volta, querem eles também voltar.
Lá fora uma vegetação se deixa perceber pelos contornos destacados na noite escura. É lua cheia, mas está nublado, de maneira que não se enxerga muito bem. Eu queria vir de carro, mas minha mulher disse que eu estava estranho e não devia dirigir, que se eu não fosse de avião deveria ir de ônibus. E foi melhor mesmo assim. O ônibus sempre demora mais e te dá algo que de outra forma você não pode obter. Estou espremido numa janela em um ônibus lotado com quarenta pessoas que ruma cada vez mais pro sul noite adentro, esfriando cada vez mais.
Ao meu lado um senhor idoso que dormiu assim que as rodas começaram a girar, antes mesmo que o ônibus cruzasse a ponte deixando a ilha. Não é só a ilha que fica para trás, mas algo mais, uma vida inteira, um eu mesmo que vivia lá tranqüilo e que sei que não retornará desta viagem. Nos primeiros cinco minutos xinguei mentalmente o velho com todas as imprecações que conhecia, mas agora fico feliz que ele esteja ao meu lado dormindo e eu possa me encostar um pouco nele e esquentar-me. Eu nunca gostei de velórios, talvez nem devesse ir nessa viagem.
Esse senhor me lembra meu pai em minha última viagem que fizemos. Seus cabelos já brancos e sua mão sem a força de outrora. Ele estava com frio na viagem e pedira para que eu me encostasse nele e eu, adolescente, fiquei com nojo de ter que viajar com outro homem encostado em mim. Com muito esforço encostei-me e vim rememorando coisas da infância. Coisas que ficam sempre escondida sob nossos pensamentos e só vêm a tona em viagens escuras e exaustivas.
Lembrava das vezes em que, chorando, fora com o cachorro da casa que eu encontrara minha derradeira companhia. As patas peludas, o cheiro de barro, o cheiro de pêlo sujo, o rabo abanando, todo um conjunto de coisas que não entendia direito porque eu soluçava e chorava, mas era esperto o suficiente para entender que aquele não era o estado normal daquela criatura de pele e cabelos e pedaços de pano sobre o corpo que ele tentava compreender.
Meu pai dizia que a gente tinha que se livrar daquele cachorro, que não era bom para as crianças. Meu pai era a espécie de monstro que eu temia me tornar no futuro, quando crescesse. Eu podia me ver com pernas gigantes e um sorriso cruel devastando cidades e espalhando mortes, mesmo as daqueles que eu mais amava.
Um barulho brusco me acordou sobressaltado e por um instante, confuso, sem saber onde estava, não consegui distinguir direito quem eu era ou onde estava. O monstro dos sonhos, a criança confusa, o adolescente saindo de casa, o cachorro. A pessoa tornou a bater a porta do banheiro com força, jogando nova nuvem de cheiros para dentro do ônibus e na claridade vi o velho ao meu lado, meu próprio pai, meu próprio falecido pai.
Sacudi a cabeça e olhei pela janela tentando espantar de vez o espírito embriagado dos sonhos. Começava a amanhecer e já dava pra ver as pastagens e plantações que passavam pela janela. Eu já era um homem e aquele homem ao meu lado não era meu pai, era apenas um bom idoso que fizera a gentileza de sentar-me ao meu lado.
O homem acordou incomodado, como quem percebe que está sendo observado. Fiquei sem reação ao perceber que dormira algumas horas em seu ombro. Mas ele limitou-se a me dar um bom dia e percebi que ele nem sequer acordara durante a noite. Por algum estranho motivo, isso me acalmou.
Esfriou, não?, comentei. Ele assentiu e ambos nos viramos para o lado e não nos falamos mais. Ele tinha feições indígenas bastante agradáveis, bem diferentes das feições rudes do pai que em poucas horas estaria enterrando.
Algumas coisas precisam de tempo para ser digeridas, meses, anos, uma vida inteira talvez. Assim como o ganho que se tem de tempo em se ver um filme, ao invés de ler o livro, igual à perda de profundidade que se tem por ficar num produto superficial que não te dá tempo de imergir nele plenamente. O sol já nascia, iluminando as vacas na beira da estrada, e eu comecei a pensar nas providências que teria que tomar e em minha mãe agora viúva. Fiz bem em vir de ônibus e não de avião, pensei.