21/10/2010

Caçada

Eram cerca de dez horas da noite quando começamos a correr. Noite quente, mata fechada, lua amarela, sangue nos olhos, lançamento de livros da Nephelibatas no Talyesin. Noites quentes são a última chance de felicidade da humanidade.
Avançamos a longa ladeira de horas suando e correndo no ambiente fechado e abafado. É preciso correr quando não se quer ter o corpo trucidado por feras selvagens, ou quando você é a ameaça perseguindo uma presa de carne vermelha e suculenta. Você pode sentir seus dentes furando o couro do animal vivo que ainda se debate, o gosto do sangue quente, mais um aperitivo sensual do que de fato alimento.
São três da manhã quando o cansaço começa a abater a maioria das pessoas. Está tudo vazio já, só nosso grupo continua ainda a correr sem perceber que a corrida já terminou, o público se foi, a faixa de vitória foi enrolada e guardada e o juiz começa a apagar as luzes e empilhar cadeiras em cima das mesas.
Ganhamos as ruas. As nada desertas ruas do centro da cidade, habitadas por panfletos de clubes noturnos que mostram as garotas em exibição, moradores de rua que tentam dormir em qualquer canto possível, tentando ignorar os bêbados que por ali passam falando alto, travestis da Hercílio Luz em roupas de enfermeira, aeromoça ou colegial sacana. O lado inconsciente da cidade que se revolve e agita enquanto o lado consciente dorme, ou tenta dormir.
A corrida começa a perder fôlego subindo a ladeira do TAC. A noite como um espelho dentro de um espelho começa a sofrer reviravoltas incompreensíveis. Não há mais lobos nos caçando ou coelhos suculentos para serem caçados, há loucos que nos abordam balburdiando coisas incompreensíveis, pessoas que passam a cada cinco minutos nos pedindo cigarro, cachaça ou outra coisa, um grupo hippie teletransportado dos anos 60 para nosso lado, que nos cerca com música de violão, incensos, faixas coloridas e demonstrações de amor fraterno entre humanos e animais, cachorros e humanos deitados no chão das ruas abraçando-se, beijando e catando pulgas nos pelos alheios.
Continuamos correndo e agora entramos na penumbra de sombras e terrores incompreensíveis. Casas e mais casas empilhadas, repletas de moradores despertos pelo terror da madrugada e o medo de bandidos. Uma velha sentada num baú de ouro espreita os transeuntes que passam com olho clínico, desconfiada. A guardiã do hospício urbano aberto pede silêncio do alto de sua torre a todos que passam. Um sofá no meio da rua é um convite enganoso ao descanso, uma vez que já se encontra ocupado por um morador que ali dorme profundamente.
Noites quentes são a redenção alegre após a tristeza e desespero do inverno úmido da ilha.