De tudo que aconteceu, uma coisa posso afirmar com certeza: não saiu ilesa daqueles acontecimentos madame Misancena.
--- Mentira --- dirão os céticos.
A eles responderei sacando minha espada e bradando do alto de meu cavalo: “Verdade!”.
--- Mas você não tem cavalo nem espada --- dirão os racionalistas.
A eles responderei: “Esperem eu ter uma que vocês verão, incrédulos!”
O fato é que no dia 14 de setembro de 2004 vi o sargento Mikomski passar como um foguete pelo boteco do português e entrar branco na delegacia.
--- “Madame Misancena está morta” --- disse ele.
Logo mais de cinqüenta policiais já se dirigiam ao La Patusca, requintado bordel da cidade nos limites entre a zona de tolerância e a civilização moralizada. É claro que o distanciamento era meramente geográfico, uma vez que os freqüentadores do inferninho vinham da afamada zona moralizada.
Logo em frente ao rendez-vous uma turba se formava. A multidão lamentava e lastimava, mas ninguém tinha coragem de entrar. O valioso sargento Mikomski foi eleito pela multidão para ser o primeiro que entraria no recinto, pois muito embora fosse ele que havia dado a todos a notícia, ele mesmo não fora no local conferir, soubera apenas por intermédio de uns bebuns que passavam pela rua indo pra casa ao meio-dia.
O dia estava quente. Quente demais até mesmo para o verão. Jovens virgens desmaiavam no meio da rua, sufocadas pelo calor do dia e da multidão. Um cachorro de raça meio vira-latas mijara no chão e rolava no próprio mijo para se refrescar. Até que era uma boa idéia, pensei. Embora o cachorro fosse macho, seu dono a chamava de Branquinha. Fatos inexplicáveis que só se encontra no mundo real e que não se deve incluir na literatura por ser muito pouco realista. Tirei meu bloco de anotações e anotei com cuidado o alerta de que quando escrevesse sobre este fato deveria omitir o nome do cachorro de meu romance, pois de outro forma perderia seu realismo e me seria negado o reconhecimento como grande escritor. Há de se fazer estes pequenos sacrifícios quando se caminha rumo à grandeza, pensei me consolando.
Depois de muito barulho e pouca ação, sargento Mikomski resolveu honrar as calças que vestia e entrou no recinto. Passou pela porta de madeira velha, fechando-a atrás de si e desaparecendo da multidão.
Lá dentro, demorou dez ou vinte segundos parado atrás da porta até a vista se acostumar com a escuridão. Uma sala com decoração de boate dos anos 70 e cheiro de mofo e cerveja azeda foi lentamente surgindo aos seus sentidos. E não era à toa, uma vez que o La Patusca fora fundado em 72 pela falecida mãe de madame Misancena, e desde então nunca mudara sua decoração ou recebera uma faxina. Dona Cleonice, durante o tempo que dirigira o local, ficara conhecida pelo apelido de Cleo dos chulapas. Nunca entendi tal apelido, de forma que decidi que esse era outro fato que eu deveria omitir, refreando-me para dizer apenas que com a morte da mãe ano passado, madame Misancena se tornara a mais jovem cafetina da cidade, com meros 18 anos.
Com a vista mais adaptada à escuridão, Mikomski atravessou a sala de dança se dirigindo aos quartos do local que tão bem ele já conhecia. Foi direto nos aposentos de madame Misancena, entrando pela porta entreaberta e parando atrás das cortinas que separavam o leito de uma espécie de ante-sala do quarto.
Sacou a arma, posicionado-se esticado atrás da cortina e lentamente se esgueirando para espiar o interior. Madame Misancena, com seu rosto oriental e as vestes de gueixa estava deitada na cama, com as pernas abertas, o roupão aberto e os seios à mostra apontando firmes para o lustre.
Ficou um ou dois minutos naquela posição. Suava frio, com medo que o assassino estivesse lá dentro. Foi quando a ouviu soluçar e entrou correndo no recinto, esquecendo-se de sua vida ou tudo o quanto mais fosse importante. Ela estava viva.
Mikomski pegou a japonesa embriagada no colo e a levou para a rua, onde a multidão em festa o saudou. Mais tarde, na mesma noite, o prefeito o condecorou em cerimônia oficial. E tudo voltou a ser como era antes.
Naquela noite, a cidade inteira não dormiu em festa. E a bebedeira foi tanta que acabei gastando todo o dinheiro que durante anos eu economizara tendo em vista a compra de um cavalo, uma espada e as vestes plumosas de um dragão da independência. Agora eu teria que desistir de tudo. Era o fim de um longo sonho.
05/09/2004
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