22/07/2010

Ligações

A chuva castiga a janela, o telefone toca, o cheiro de café continua aquecendo a casa. Na escuridão do meio da tarde de inverno, penso em Rubem Fonseca, João Ubaldo, Fausto Wolff, no pessoal da velha geração.
A geração deles e a minha tem muito pouco em comum, afastada não só por uma geração intermediária, cujos heróis morreram de overdose, mas por uma ditadura civil-militar no meio que esfacelou em duas décadas toda nossa cultura.
Foi uma geração de sorte a deles, que viveu em um país completamente diferente, menos tresloucado, e que deixa um vácuo na atualidade cada vez que um desses senhores sai de cena, como o grande Fausto. Em comum, entre a minha geração e a deles, só um tiro de espingarda na cabeça, ou mais precisamente, as mortes de Hemingway e Kurt Cobain. Hemingway, como se sabe, foi um dos grandes escritores americanos, talvez o maior. Já a minha geração ficou com Cobain que, embora tenha renovado por alguns anos o cenário musical, marcou mais pela exótica performance de se masturbar no palco em um show no Brasil. Por aí tem-se em conta as diferenças entre aquela geração e a minha.
A chuva castiga a janela com mais força ainda, com raiva mesmo. O telefone continua tocando. E o cheiro do café dá mais densidade ao ambiente escuro. Eu nunca entendo porque as pessoas continuam tentando me ligar. Daí reclamam que não tenho celular. Então quando comprei um era aquele inferno: o telefone tocava, tocava, tocava por infindáveis minutos. Aí parava. Aí a pessoa ligava pro celular, que tocava outros tantos minutos. Tentava mais uma vez o telefone e outra o celular, quando então finalmente desistia e esperava meia hora para começar tudo de novo. Aí me encontrava na rua e ainda me enchia o saco que eu nunca atendia o celular, o que me obrigou a devolvê-lo à operadora, pois só duplicava meus problemas, ao invés de resolvê-los.
E o telefone ainda toca e a chuva cai, enquanto o café se esvai. Ah, o cheiro, tão mil vezes melhor do que o som! A sinuosidade sensual da xícara, em contraste com a feiúra futurista do telefone.
Sinto que alguma coisa se perde, alguma coisa que se vai junto com as pessoas que conheceram aquele outro país, e que se mantém por um fio com aqueles que ainda estão por aqui. A própria história se perde, abafada pelo peso dos livros. Não é algo casual, é uma guerra, a disputa da geração que hoje está no poder se irá receber o legado daquela geração anterior ao golpe ou continuará a tarefa da ditadura de destruí-la.
Por aqui o telefone ainda toca.