Sabe, há contas que temos que acertar com o passado. Essa coisa, por exemplo, de botarmos a culpa de tudo nos nazistas, como pretexto até para perdoar os aliados pelas duas bombas que arrasaram duas cidades japonesas. Ou por querer eleger uma pessoa ou grupo como essência do mal, e nos abstermos de reconhecer a própria inoperância dos conceitos de mal e bem, que os impulsos destrutivos residem também em nós mesmos.
Há uma lei no mundo da argumentação que surgiu na usenet mas podemos aplicar para todo nosso mundo cotidiano, a Lei de Godwin, que diz que à medida que uma discussão cresce, ela certamente vai descambar para um lado chamando o outro de nazista. E como corolário, o lado que chamar o outro de nazista primeiro perde a discussão.
Chamar seu oponente de nazista ou fascista é o mingau com leite de eleições, até mesmo ex-presidentes se prestam a esse ridículo na eleição atual, chamando o lado opositor de nazista. E olha que fala de ex-presidente, em nossa triste história, é sempre algo coberto de inveja, rancor e falta de senso de ridículo.
Mas agora vem à tona outro caso de mais triste figura ainda, um ministro da suprema corte chamando a popular ficha limpa e seus apoiadores de nazistas. Aplicássemos a Lei de Godwin também na justiça e lá se ia um ministro automaticamente retirado de suas funções, embora não faltem mesmo movimentos para dar-lhe o primeiro impeachment de nossa história judicial, por conta dos inúmeros constrangimentos a que tal figura tem exposto a corte em que milita partidariamente.
Sabendo-se do amplo apoio à lei da ficha limpa, o magistrado acaba de chamar mais da metade dos brasileiros de nazifascistas. Se o magistrado virou senil ou vocês leitores viraram adeptos fanáticos do Mein Kampf do dia para noite, é algo que deixo a vocês decidirem. O fato é que afirmações desse tipo não só desgraçam nossa vida republicana, como cria os fantasmas que pretende combater. Quantos novos candidatos ao nazismo o ministro não cria ao associa-lo à tal lei?
Aqui em Santa Catarina, onde até o estupro a lei permite, desde que o pai seja dono de canal de TV, o nazismo nunca saiu de moda, embora submerso. Não é à toa que saiu daqui a iniciativa de barrar a lei que permite acesso de negros às universidades, ou os dois terços conservador de nosso eleitorado.
Por isso é hora de jogar fora a máscara e entendermos que nazistas não são seres de outro planetas, são nossos vizinhos, parentes, colegas. Algo que não se vence com guerras.
28/10/2010
23/10/2010
21/10/2010
Caçada
Eram cerca de dez horas da noite quando começamos a correr. Noite quente, mata fechada, lua amarela, sangue nos olhos, lançamento de livros da Nephelibatas no Talyesin. Noites quentes são a última chance de felicidade da humanidade.
Avançamos a longa ladeira de horas suando e correndo no ambiente fechado e abafado. É preciso correr quando não se quer ter o corpo trucidado por feras selvagens, ou quando você é a ameaça perseguindo uma presa de carne vermelha e suculenta. Você pode sentir seus dentes furando o couro do animal vivo que ainda se debate, o gosto do sangue quente, mais um aperitivo sensual do que de fato alimento.
São três da manhã quando o cansaço começa a abater a maioria das pessoas. Está tudo vazio já, só nosso grupo continua ainda a correr sem perceber que a corrida já terminou, o público se foi, a faixa de vitória foi enrolada e guardada e o juiz começa a apagar as luzes e empilhar cadeiras em cima das mesas.
Ganhamos as ruas. As nada desertas ruas do centro da cidade, habitadas por panfletos de clubes noturnos que mostram as garotas em exibição, moradores de rua que tentam dormir em qualquer canto possível, tentando ignorar os bêbados que por ali passam falando alto, travestis da Hercílio Luz em roupas de enfermeira, aeromoça ou colegial sacana. O lado inconsciente da cidade que se revolve e agita enquanto o lado consciente dorme, ou tenta dormir.
A corrida começa a perder fôlego subindo a ladeira do TAC. A noite como um espelho dentro de um espelho começa a sofrer reviravoltas incompreensíveis. Não há mais lobos nos caçando ou coelhos suculentos para serem caçados, há loucos que nos abordam balburdiando coisas incompreensíveis, pessoas que passam a cada cinco minutos nos pedindo cigarro, cachaça ou outra coisa, um grupo hippie teletransportado dos anos 60 para nosso lado, que nos cerca com música de violão, incensos, faixas coloridas e demonstrações de amor fraterno entre humanos e animais, cachorros e humanos deitados no chão das ruas abraçando-se, beijando e catando pulgas nos pelos alheios.
Continuamos correndo e agora entramos na penumbra de sombras e terrores incompreensíveis. Casas e mais casas empilhadas, repletas de moradores despertos pelo terror da madrugada e o medo de bandidos. Uma velha sentada num baú de ouro espreita os transeuntes que passam com olho clínico, desconfiada. A guardiã do hospício urbano aberto pede silêncio do alto de sua torre a todos que passam. Um sofá no meio da rua é um convite enganoso ao descanso, uma vez que já se encontra ocupado por um morador que ali dorme profundamente.
Noites quentes são a redenção alegre após a tristeza e desespero do inverno úmido da ilha.
Avançamos a longa ladeira de horas suando e correndo no ambiente fechado e abafado. É preciso correr quando não se quer ter o corpo trucidado por feras selvagens, ou quando você é a ameaça perseguindo uma presa de carne vermelha e suculenta. Você pode sentir seus dentes furando o couro do animal vivo que ainda se debate, o gosto do sangue quente, mais um aperitivo sensual do que de fato alimento.
São três da manhã quando o cansaço começa a abater a maioria das pessoas. Está tudo vazio já, só nosso grupo continua ainda a correr sem perceber que a corrida já terminou, o público se foi, a faixa de vitória foi enrolada e guardada e o juiz começa a apagar as luzes e empilhar cadeiras em cima das mesas.
Ganhamos as ruas. As nada desertas ruas do centro da cidade, habitadas por panfletos de clubes noturnos que mostram as garotas em exibição, moradores de rua que tentam dormir em qualquer canto possível, tentando ignorar os bêbados que por ali passam falando alto, travestis da Hercílio Luz em roupas de enfermeira, aeromoça ou colegial sacana. O lado inconsciente da cidade que se revolve e agita enquanto o lado consciente dorme, ou tenta dormir.
A corrida começa a perder fôlego subindo a ladeira do TAC. A noite como um espelho dentro de um espelho começa a sofrer reviravoltas incompreensíveis. Não há mais lobos nos caçando ou coelhos suculentos para serem caçados, há loucos que nos abordam balburdiando coisas incompreensíveis, pessoas que passam a cada cinco minutos nos pedindo cigarro, cachaça ou outra coisa, um grupo hippie teletransportado dos anos 60 para nosso lado, que nos cerca com música de violão, incensos, faixas coloridas e demonstrações de amor fraterno entre humanos e animais, cachorros e humanos deitados no chão das ruas abraçando-se, beijando e catando pulgas nos pelos alheios.
Continuamos correndo e agora entramos na penumbra de sombras e terrores incompreensíveis. Casas e mais casas empilhadas, repletas de moradores despertos pelo terror da madrugada e o medo de bandidos. Uma velha sentada num baú de ouro espreita os transeuntes que passam com olho clínico, desconfiada. A guardiã do hospício urbano aberto pede silêncio do alto de sua torre a todos que passam. Um sofá no meio da rua é um convite enganoso ao descanso, uma vez que já se encontra ocupado por um morador que ali dorme profundamente.
Noites quentes são a redenção alegre após a tristeza e desespero do inverno úmido da ilha.
14/10/2010
De dragões e garotinhas
Havia esse parque com brinquedos coloridos para as crianças escorregarem e se balançarem e toda a sorte de coisas que as crianças costumam fazer. Eu ia lá diariamente para consumir minha dose diária de cigarros e de graspa, tentando relaxar em meio àquela gritaria pueril.
Eu precisava reclamar aquele território para mim, tomar posse. Primeiro tentei fazer como os cachorros e urinar nos brinquedos, mas percebi que as crianças pareciam não se importar muito com isso e escorregavam em cima da urina seca sem nenhum problema. Tentei um ritual de guerra com roupas indígenas, mas isso mais divertiu as crianças do que assustou-as.
Então, um dia, eu lia um livro quando uma dessas criancinhas de olhão arregalado me pediu para jogar a bola que havia caído ao meu lado. Peguei a bola e perguntei se ela gostava, ela disse que sim. Perguntei se havia ganho de presente, e ela disse que sim, do papai noel.
Era minha chance. Abri para ela as boas novas que os pais nunca lhe contavam, que papai noel não existia, que os pais delas a haviam enganado, que aquela era uma bola ordinária comprada em loja de quinquilharias e que os pais dela haviam mentido para ela porque não a amavam.
A criança saiu chorando e foi contar para a mãe, deixando me satisfeito com a leitura, até que me vejo cercado por um grupo de senhoras revoltadas. A mais descontrolada era aquela que parecia ser a mãe da garotinha, que me ameaçava com um processo e gritava freneticamente enquanto a criança chorava agarrada nas pernas da mãe.
Bem, escapei por pouco de apanhar por aquele grupo de mulheres em fúria, mas acabei mesmo sendo processado pela mãe. O juiz, que não queria saber daquela querela fútil, resolveu encerrar sumariamente o processo me livrando de pagar uma indenização por danos morais, mas me obrigando a trabalhar em uma creche por seis meses.
Foi como se a bota pesada da justiça destroçasse meus dentes. Justo eu sofrer tal castigo! O juiz disse que seria uma medida educacional e não teve jeito. Lá ia eu todo dia em meio aquela balbúrdia terrível de crianças gritando e trocando secreções líquidas.
Me colocaram para ler histórias, que eram sempre coisas terrivelmente chatas. Até o dia em que apareci com um livro de 400 páginas com um dragão na capa. Passei seis meses lendo aquela história, num silêncio absoluto, enquanto as crianças ansiavam pela hora em que o dragão entraria em cena. Dragões, nada como eles para intimidar criancinhas!
Eu precisava reclamar aquele território para mim, tomar posse. Primeiro tentei fazer como os cachorros e urinar nos brinquedos, mas percebi que as crianças pareciam não se importar muito com isso e escorregavam em cima da urina seca sem nenhum problema. Tentei um ritual de guerra com roupas indígenas, mas isso mais divertiu as crianças do que assustou-as.
Então, um dia, eu lia um livro quando uma dessas criancinhas de olhão arregalado me pediu para jogar a bola que havia caído ao meu lado. Peguei a bola e perguntei se ela gostava, ela disse que sim. Perguntei se havia ganho de presente, e ela disse que sim, do papai noel.
Era minha chance. Abri para ela as boas novas que os pais nunca lhe contavam, que papai noel não existia, que os pais delas a haviam enganado, que aquela era uma bola ordinária comprada em loja de quinquilharias e que os pais dela haviam mentido para ela porque não a amavam.
A criança saiu chorando e foi contar para a mãe, deixando me satisfeito com a leitura, até que me vejo cercado por um grupo de senhoras revoltadas. A mais descontrolada era aquela que parecia ser a mãe da garotinha, que me ameaçava com um processo e gritava freneticamente enquanto a criança chorava agarrada nas pernas da mãe.
Bem, escapei por pouco de apanhar por aquele grupo de mulheres em fúria, mas acabei mesmo sendo processado pela mãe. O juiz, que não queria saber daquela querela fútil, resolveu encerrar sumariamente o processo me livrando de pagar uma indenização por danos morais, mas me obrigando a trabalhar em uma creche por seis meses.
Foi como se a bota pesada da justiça destroçasse meus dentes. Justo eu sofrer tal castigo! O juiz disse que seria uma medida educacional e não teve jeito. Lá ia eu todo dia em meio aquela balbúrdia terrível de crianças gritando e trocando secreções líquidas.
Me colocaram para ler histórias, que eram sempre coisas terrivelmente chatas. Até o dia em que apareci com um livro de 400 páginas com um dragão na capa. Passei seis meses lendo aquela história, num silêncio absoluto, enquanto as crianças ansiavam pela hora em que o dragão entraria em cena. Dragões, nada como eles para intimidar criancinhas!
13/10/2010
Taxionomia de Falácias
06/10/2010
A arte de vender ilusões
A arte de vender ilusões
Passadas as eleições, posso falar um pouco sobre esta incomodação bienal que nos acomete. Se há alguma coisa que se aprende com o pleito, é o fato de que ainda não aprendemos nada.
Passamos toda nossa vida desde a redemocratização sonhando com um salvador. Collor viria acabar com os marajás, com a corrupção, tornar o Brasil um tigre asiático, ai de nós! Daí o Itamar até que ajeitou tudo, pôs a casa em ordem, estabilizou a moeda e de novo na eleição fomos atrás da idéia de que um sociólogo iluminado seria a salvação, e ele quebrou três vezes o país. Então o Lula seria a nova redenção, filho do povo, etc e tal, e o governo vai patinando, até tomar algum rumo só na metade quando os programas de distribuição de renda começam a funcionar.
Nova eleição, velhos problemas. E não falo dos candidatos, mas das pessoas que acreditam que os candidatos estão disputando as eleições pensando na população, não nas empresas. Distribuição de renda, por exemplo, não é nenhuma mágica, é a coisa mais fácil de fazer, só nunca fora feita no Brasil porque o setor exportador, dominante da economia, precisa de uma renda achatada para pagar menos salário, diminuindo o preço do seu produto e exportando mais. Então distribuição de renda não é nenhuma benesse ao povo, é apenas o apoio do setor varejista nacional que precisa da renda distribuída para gerar crescimento interno da economia e vender produtos aqui dentro, mesmo que provenham da indústria de fora.
Esse dilema entre exportadores produtores X comerciantes importadores dá a dinâmica do país desde a República Velha, e todo o jogo de cena político dos candidatos é apenas para se situar melhor junto a um ou outro desses setores. São eles que definem as eleições com os milhões de patrocínio, não você, com seu mísero voto no dia de votar. Isso vale para todos eles, até mesmo quem se apresenta como novidade, cujas credenciais para se candidatar foi uma gestão tão inoperante como ministra que acabou demitida pelo seu próprio partido, tendo o desmatamento no Brasil caído drasticamente após a demissão dela.
De todos os emails caluniosos que os partidos lançam nas eleições, o mais tosco me veio dos verdes: acusava o MST de matar tartarugas de rio no Solimões, tendo como prova fotos de tartarugas marinhas (uma espécie bem diferente), tiradas na frente de um mar azul cheio de ondas. E assim o conservadorismo, usando velhos golpes baixos, tenta sempre se vestir de algo novo, e muita gente acredita.
Passadas as eleições, posso falar um pouco sobre esta incomodação bienal que nos acomete. Se há alguma coisa que se aprende com o pleito, é o fato de que ainda não aprendemos nada.
Passamos toda nossa vida desde a redemocratização sonhando com um salvador. Collor viria acabar com os marajás, com a corrupção, tornar o Brasil um tigre asiático, ai de nós! Daí o Itamar até que ajeitou tudo, pôs a casa em ordem, estabilizou a moeda e de novo na eleição fomos atrás da idéia de que um sociólogo iluminado seria a salvação, e ele quebrou três vezes o país. Então o Lula seria a nova redenção, filho do povo, etc e tal, e o governo vai patinando, até tomar algum rumo só na metade quando os programas de distribuição de renda começam a funcionar.
Nova eleição, velhos problemas. E não falo dos candidatos, mas das pessoas que acreditam que os candidatos estão disputando as eleições pensando na população, não nas empresas. Distribuição de renda, por exemplo, não é nenhuma mágica, é a coisa mais fácil de fazer, só nunca fora feita no Brasil porque o setor exportador, dominante da economia, precisa de uma renda achatada para pagar menos salário, diminuindo o preço do seu produto e exportando mais. Então distribuição de renda não é nenhuma benesse ao povo, é apenas o apoio do setor varejista nacional que precisa da renda distribuída para gerar crescimento interno da economia e vender produtos aqui dentro, mesmo que provenham da indústria de fora.
Esse dilema entre exportadores produtores X comerciantes importadores dá a dinâmica do país desde a República Velha, e todo o jogo de cena político dos candidatos é apenas para se situar melhor junto a um ou outro desses setores. São eles que definem as eleições com os milhões de patrocínio, não você, com seu mísero voto no dia de votar. Isso vale para todos eles, até mesmo quem se apresenta como novidade, cujas credenciais para se candidatar foi uma gestão tão inoperante como ministra que acabou demitida pelo seu próprio partido, tendo o desmatamento no Brasil caído drasticamente após a demissão dela.
De todos os emails caluniosos que os partidos lançam nas eleições, o mais tosco me veio dos verdes: acusava o MST de matar tartarugas de rio no Solimões, tendo como prova fotos de tartarugas marinhas (uma espécie bem diferente), tiradas na frente de um mar azul cheio de ondas. E assim o conservadorismo, usando velhos golpes baixos, tenta sempre se vestir de algo novo, e muita gente acredita.
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