Era provavelmente a melhor banda de Rock que já vi tocar naquele lugar.
Estou falando é claro do lendário bar do Sangue, que tinha esse nome porque sempre saía alguém arrebentado de lá no fim da noite, que nem era no fim da noite, mas no meio da manhã, propriamente dita.
Mas o fato é que tudo o que resta são ruínas de um passado escrito ao som de choros de bebê. O bar não existe mais, a banda não existe mais e até mesmo as três meninas que compunham a banda já morreram.
Alguns achavam que era uma banda pornográfica ou algo sinistro. Mas não tinha nada disso. A única coisa que rolava é que a meninas tocavam sem roupa e se esfregavam o show inteiro. Mas o show era algo didático, educativo. Lembrava aventuras de RPG, lendas celtas e longas sessões da trilogia de filmes do senhor dos anéis, só que sem roupas e sem o macaco-prego.
Era uma espécie de figuração céltica ou grega. Na verdade personagens que pertencem a várias mitologias: a moça, a mulher e a velha. De todas a mais linda era a moça, embora quem costumasse a agarrar o pessoal da platéia fosse a velha. Enfim, não se pode nunca ter tudo.
A moça tocava bateria como um ser enjaulado. Era cercada de pratos e tambores e os surrava do início ao fim da exibição. Era selvagem. Era roque tocado como deve ser: som alto e mulheres nuas. Infelizmente, é como dizem, e a chama que mais brilha é a primeira a se apagar. Ecstasy, foi o que a necropsia revelou. Uma superdosagem que ferveu o cérebro e pifou os pulmões. Uma morte estúpida e desnecessária. A primeira delas.
Depois foi a guitarrista. A mulher. Toda a selvageria da moça, mas com mais pêlos pubianos. Aliás com mais pelos nas axilas também. E muitos piercings e tatuagens. E aquela praga que só as mulheres conseguem notar e que chamam de celulite. Ou não, porque de fato nunca puder ver nenhuma marca de coisa alguma e desconfio mesmo de que isso fosse apenas um boato criado por alguma feminista católica. Se a moça era bela, a mulher era o auge, dez vezes mais bela, dez vezes mais atitude, dez vezes mais ocorrências de doenças venéreas. Todos nós venerávamos ela. Embora tocasse um violentíssimo punk lesbocore toda noite, era de dia uma pacata funcionária pública que deu o azar de morrer de câncer com vinte e poucos anos. O mero fato de não ter morrido eu ou qualquer um dos escroques que freqüentavam o bar é, por si só, uma prova da injusteza da vida.
A banda já havia acabado. O bar já havia fechado. E o ano já estava suficientemente ruim com as duas mortes quando veio a terceira. A velha, a baixista da banda, de personalidade mais melancólica e contida do que as outras duas, embora apetite sexual exponencialmente maior. Às vezes atacava também no vocal imitando Janis Joplin deprimida, ou, se estava alegre, saía pelo bar agarrando um por um todos os fregueses. É a diminuição da progesterona que, na idade madura das mulheres, faz aumentar a proporção de testosterona no sangue delas deixando-as piscando com vontade de dar por onde puder.
O mais absurdo é que anos de putaria rock-hiponga e ela nunca pegara nenhuma doença venérea. Nada. Nem sequer chato, que era uma praga costumeira naquele bar. Um dia veio um ex-namorado conversar. Beberam um pouco, deram umazinha e pronto, no dia seguinte ela, sem saber, já amanhecera com o vírus. Ela se foi de forma deprimente, apenas mais uma na lista dos atingidos pela Aids. O que fez com que todo o antigo público do extinto bar corresse aos laboratórios em busca de exames. Com a morte da velha, morria também tudo de bom que havia acontecido naqueles shows político-pedagógicos. Era a morte de uma era, não só do bar, mas de todas as integrantes da banda também.
Era fim do ano quando encontrei um amigo de longa data. “Adivinha quem morreu?”, perguntou ele. “Vai se fuder”, eu disse, e me afastei de ouvidos tampados. Já tinha havido mortes demais para mim naquele ano. Para mim elas sempre estarão vivas em minhas memórias bêbadas descritas de forma exata acima. Para os abstêmios, talvez a coisa seja um pouco mais sem-graça.
31/08/2004
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