Devo dizer que tenho sido maldoso. Li num desses lugares anônimos da internet que a crônica é um local de descanso e amenidades para o leitor fatigado da leitura de notícias pesadas e ácidas dos jornais, mas temo que tenho vos infligido justamente o oposto, oferecendo uma crônica pesada e ácida em meio às amenidades dos jornais. E a você, que é um membro de um grupo extremamente seleto de pessoas, cerca de uma em um bilhão, devo minhas sinceras desculpas.
Devo, porém, em minha defesa, dizer que não é uma culpa apenas minha. Longe já se vão os dias em que o trabalho de um escritor consistia em se isolar em um quarto imundo ponderando sobre a vida cotidiana. Hoje as coisas são outras, saímos da época da produção romântica para a indústria cultural, e o trabalho aqui acabado resulta na verdade de um batalhão de operários dos quais o escritor é apenas um gerente.
A começar, é preciso contratar e enviar cerca de uma dúzia de coletores de histórias por aí pelo mundo de avião. Então, espero as histórias chegarem. De Brasília um enviado manda a história do sujeito que conheceu a menina, dormiu com ela, e só no dia seguinte notou que ela não tinha um dos braços. De Rio Branco outro enviado manda a história de um general que pediu pombos verdes e amarelos e os soldados mataram duas dúzias de pombos pintando-os com tinta a óleo. Do Rio de Janeiro vem a história do sujeito que foi numa festa que acabou em uma grande briga de pitboys.
Nenhuma das histórias é boa o suficiente, então elas têm que ir para um grupo de redatores. A tarefa é dividida, cada um redige um parágrafo, por isso é necessário também, um redator geral para juntar as coisas depois. Aí passa por uns seis ou sete revisores, uma vez que os redatores geralmente são imigrantes ilegais, pois com isso se economiza na mão de obra, embora a maioria deles não domine nosso idioma.
Ainda, há o contrato com uma ONG que disponibiliza dez chimpanzés que ficam digitando aleatoriamente vinte e quatro horas por dia, num regime ininterrupto que só pode ser mantido com muito café, cigarro e anfetamina, o que também eleva os custos de produção da crônica.
Por fim chegam os dois textos prontos para mim, o escritor, que como chefe do empreendimento literário devo escolher entre o texto dos homens ou o dos chimpanzés, que então é publicado. Constato, com orgulho, que nós homens normalmente ganhamos e apenas em 35% das vezes o texto dos chimpanzés tem mais brilho ou inteligência. E assim as coisas são.
04/03/2010
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