19/08/2010

Noites em fuso

As amizades são coisas inevitáveis. Laços de demência que juntam pessoas completamente diferentes. Como esse amigo de infância que me chamava uma vez por ano pra ir num boteco, me alugando a noite inteira com sua paranóia e fixação em guerras.
Eu nunca entendi porque ia, talvez porque me divertisse com aquilo, com o aprofundamento gradual da doença. Nesse ano, na última vez que o vi, ele estava excitado com a idéia de que deveríamos invadir a Bolívia. Era moleza, segundo ele, era só terminar o serviço que começamos quando lhes roubamos o Acre. Quase que uma missão histórica, que poderia render muito gás, prata e lítio.
Eu me diverti naquela noite e voltei pra casa me perguntando como pode ter gente que acredita em tais sandices. Segundo ele, o futuro da diplomacia internacional era a política de pátio de escola: fugir dos caras grandes e bater nos caras menores.
Eu ria, mas alguma coisa em mim vislumbrava um futuro sombrio naquilo tudo. Foi naquela noite que cheguei em casa cansado e não conseguia dormir com o barulho ao lado. Lá morava um senhor idoso, muito idoso, que encarava um câncer já em estágio avançado. Com a progressão da dor e a iminência da morte, nem a morfina lhe trazia mais conforto e alívio. O médico então lhe receitou o uso terapêutico de maconha, que, embora muito eficiente no combate à dor, deixava o velho com essas crises incontroláveis de riso quando ele exagerava a dose.
Dormi um sono intraquilo, atormentado pelas idéias do meu amigo e a risada abafada e incontrolável do velho. Acostumei-me com aquilo noite após noite. A risada fazia altos e baixos, como rajadas de metralhadora, quando numa dessas noites acordei com os estrondos fortes das bombas caindo. Bombas de alto impacto, do tipo arrasa-quarteirões, seguidas do barulho de combate aéreo, tiros, muitos tiros, gritos e lamentos e sirenes.
Então um silêncio muito profundo e o assobio muito distante de uma bomba chegando. Uma única bomba. A bomba. Aquela que vinha para cozinhar e devastar todos os vivos num raio de centenas de quilômetros. Mil vezes mais forte que Hiroshima ou Nagasaki.
Corri para a rua para ver a destruição final, a chegada da morte em carruagem alada, quando o som da risada do velho me chamou novamente a atenção. O mundo fervia, murchava e morria e ele continuava rindo. Ele e a família entraram num abrigo nuclear no porão da casa e me chamaram. Entramos, selamos a porta maciça, tudo escuro, o velho ria e o mundo, lá fora, começava a queimar e derreter.

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