As amizades são coisas inevitáveis. Laços de demência que juntam pessoas completamente diferentes. Como esse amigo de infância que me chamava uma vez por ano pra ir num boteco, me alugando a noite inteira com sua paranóia e fixação em guerras.
Eu nunca entendi porque ia, talvez porque me divertisse com aquilo, com o aprofundamento gradual da doença. Nesse ano, na última vez que o vi, ele estava excitado com a idéia de que deveríamos invadir a Bolívia. Era moleza, segundo ele, era só terminar o serviço que começamos quando lhes roubamos o Acre. Quase que uma missão histórica, que poderia render muito gás, prata e lítio.
Eu me diverti naquela noite e voltei pra casa me perguntando como pode ter gente que acredita em tais sandices. Segundo ele, o futuro da diplomacia internacional era a política de pátio de escola: fugir dos caras grandes e bater nos caras menores.
Eu ria, mas alguma coisa em mim vislumbrava um futuro sombrio naquilo tudo. Foi naquela noite que cheguei em casa cansado e não conseguia dormir com o barulho ao lado. Lá morava um senhor idoso, muito idoso, que encarava um câncer já em estágio avançado. Com a progressão da dor e a iminência da morte, nem a morfina lhe trazia mais conforto e alívio. O médico então lhe receitou o uso terapêutico de maconha, que, embora muito eficiente no combate à dor, deixava o velho com essas crises incontroláveis de riso quando ele exagerava a dose.
Dormi um sono intraquilo, atormentado pelas idéias do meu amigo e a risada abafada e incontrolável do velho. Acostumei-me com aquilo noite após noite. A risada fazia altos e baixos, como rajadas de metralhadora, quando numa dessas noites acordei com os estrondos fortes das bombas caindo. Bombas de alto impacto, do tipo arrasa-quarteirões, seguidas do barulho de combate aéreo, tiros, muitos tiros, gritos e lamentos e sirenes.
Então um silêncio muito profundo e o assobio muito distante de uma bomba chegando. Uma única bomba. A bomba. Aquela que vinha para cozinhar e devastar todos os vivos num raio de centenas de quilômetros. Mil vezes mais forte que Hiroshima ou Nagasaki.
Corri para a rua para ver a destruição final, a chegada da morte em carruagem alada, quando o som da risada do velho me chamou novamente a atenção. O mundo fervia, murchava e morria e ele continuava rindo. Ele e a família entraram num abrigo nuclear no porão da casa e me chamaram. Entramos, selamos a porta maciça, tudo escuro, o velho ria e o mundo, lá fora, começava a queimar e derreter.
19/08/2010
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