A bala saiu da pistola com um estampido seco, furando o pijama listrado, atravessando o peito e o coração, matando com pressa. Já se vão lá 56 anos e o suicídio de Vargas, em 24 de agosto de 1954 continua assombrando a memória nacional.
É como uma espécie de sebastianismo às avessas, aquela frase famosa de sua carta testamento de que deixa a vida para entrar na história acabou por se transformar em uma ameaça contra seus opositores, como o fantasma que vem puxar o lençol da cama de seu desafeto. Finda a vida para se perpetuar na memória como mito, como eterna vingança contra seus oponentes, que ao revidar precisam desferir socos inúteis em fantasmas intangíveis.
E convenhamos que, como mito fundador da nacionalidade, é algo muito mais interessante que um sujeito diletante em calças coloridas e ares entediados que pára na beira de um córrego e, num arremedo patético da história americana, copia aquela frase famosa dita por Patrick Henry, em 1775, ao convencer o segundo maior estado americano da época, a Virginia, a entrar na luta pela independência: “dê-me liberdade ou dê-me a morte!”
O suicídio de Getúlio, senão por qualquer outro motivo, já é infinitamente mais interessante como mito fundador simplesmente por se tratar de uma história original, um drama autêntico, não uma repetição farsesca macaqueada de outras nações.
Mas acresce aí o fato de que a personagem é também das mais complexas, que com aquele suicídio conseguiu sair da posição de carrasco ditador para vítima e mártir da nação. É o paradoxo pulsante na história, como sempre foi em nosso país, desde os abolicionistas donos de escravos.
Mais que isso, ao contrário do mito português do sebastianismo, em que esse rei vive e voltará para ajudar o povo português, o mito de Vargas se fundou na premissa oposta, de que o homem morre mas o mito permanecerá para sempre.
E demorou quarenta anos para que os sucessores da UDN, mesmo tendo dado o golpe em 64, resolvessem se insurgir contra o legado de Vargas e tentar matá-lo pela segunda vez, destruindo o estado nacional, sucateando e vendendo as empresas criadas por Vargas, eliminando por fim os direitos trabalhistas que aquele criara.
Eu não acredito em fantasmas, mas há de se convir que esse anda assustando por aí. Na década seguinte ele deu o troco, fazendo o Estado getulista triunfar em meio à crise econômica em agosto de 2008 e agora, em agosto de 2010, vindo dar o tiro de misericórdia naqueles que pretenderam matá-lo. Um assombro!
25/08/2010
20/08/2010
19/08/2010
Noites em fuso
As amizades são coisas inevitáveis. Laços de demência que juntam pessoas completamente diferentes. Como esse amigo de infância que me chamava uma vez por ano pra ir num boteco, me alugando a noite inteira com sua paranóia e fixação em guerras.
Eu nunca entendi porque ia, talvez porque me divertisse com aquilo, com o aprofundamento gradual da doença. Nesse ano, na última vez que o vi, ele estava excitado com a idéia de que deveríamos invadir a Bolívia. Era moleza, segundo ele, era só terminar o serviço que começamos quando lhes roubamos o Acre. Quase que uma missão histórica, que poderia render muito gás, prata e lítio.
Eu me diverti naquela noite e voltei pra casa me perguntando como pode ter gente que acredita em tais sandices. Segundo ele, o futuro da diplomacia internacional era a política de pátio de escola: fugir dos caras grandes e bater nos caras menores.
Eu ria, mas alguma coisa em mim vislumbrava um futuro sombrio naquilo tudo. Foi naquela noite que cheguei em casa cansado e não conseguia dormir com o barulho ao lado. Lá morava um senhor idoso, muito idoso, que encarava um câncer já em estágio avançado. Com a progressão da dor e a iminência da morte, nem a morfina lhe trazia mais conforto e alívio. O médico então lhe receitou o uso terapêutico de maconha, que, embora muito eficiente no combate à dor, deixava o velho com essas crises incontroláveis de riso quando ele exagerava a dose.
Dormi um sono intraquilo, atormentado pelas idéias do meu amigo e a risada abafada e incontrolável do velho. Acostumei-me com aquilo noite após noite. A risada fazia altos e baixos, como rajadas de metralhadora, quando numa dessas noites acordei com os estrondos fortes das bombas caindo. Bombas de alto impacto, do tipo arrasa-quarteirões, seguidas do barulho de combate aéreo, tiros, muitos tiros, gritos e lamentos e sirenes.
Então um silêncio muito profundo e o assobio muito distante de uma bomba chegando. Uma única bomba. A bomba. Aquela que vinha para cozinhar e devastar todos os vivos num raio de centenas de quilômetros. Mil vezes mais forte que Hiroshima ou Nagasaki.
Corri para a rua para ver a destruição final, a chegada da morte em carruagem alada, quando o som da risada do velho me chamou novamente a atenção. O mundo fervia, murchava e morria e ele continuava rindo. Ele e a família entraram num abrigo nuclear no porão da casa e me chamaram. Entramos, selamos a porta maciça, tudo escuro, o velho ria e o mundo, lá fora, começava a queimar e derreter.
Eu nunca entendi porque ia, talvez porque me divertisse com aquilo, com o aprofundamento gradual da doença. Nesse ano, na última vez que o vi, ele estava excitado com a idéia de que deveríamos invadir a Bolívia. Era moleza, segundo ele, era só terminar o serviço que começamos quando lhes roubamos o Acre. Quase que uma missão histórica, que poderia render muito gás, prata e lítio.
Eu me diverti naquela noite e voltei pra casa me perguntando como pode ter gente que acredita em tais sandices. Segundo ele, o futuro da diplomacia internacional era a política de pátio de escola: fugir dos caras grandes e bater nos caras menores.
Eu ria, mas alguma coisa em mim vislumbrava um futuro sombrio naquilo tudo. Foi naquela noite que cheguei em casa cansado e não conseguia dormir com o barulho ao lado. Lá morava um senhor idoso, muito idoso, que encarava um câncer já em estágio avançado. Com a progressão da dor e a iminência da morte, nem a morfina lhe trazia mais conforto e alívio. O médico então lhe receitou o uso terapêutico de maconha, que, embora muito eficiente no combate à dor, deixava o velho com essas crises incontroláveis de riso quando ele exagerava a dose.
Dormi um sono intraquilo, atormentado pelas idéias do meu amigo e a risada abafada e incontrolável do velho. Acostumei-me com aquilo noite após noite. A risada fazia altos e baixos, como rajadas de metralhadora, quando numa dessas noites acordei com os estrondos fortes das bombas caindo. Bombas de alto impacto, do tipo arrasa-quarteirões, seguidas do barulho de combate aéreo, tiros, muitos tiros, gritos e lamentos e sirenes.
Então um silêncio muito profundo e o assobio muito distante de uma bomba chegando. Uma única bomba. A bomba. Aquela que vinha para cozinhar e devastar todos os vivos num raio de centenas de quilômetros. Mil vezes mais forte que Hiroshima ou Nagasaki.
Corri para a rua para ver a destruição final, a chegada da morte em carruagem alada, quando o som da risada do velho me chamou novamente a atenção. O mundo fervia, murchava e morria e ele continuava rindo. Ele e a família entraram num abrigo nuclear no porão da casa e me chamaram. Entramos, selamos a porta maciça, tudo escuro, o velho ria e o mundo, lá fora, começava a queimar e derreter.
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