- Serve meu copo também, por favor. Então o que achou?
- Lixo imperialista!
- Ah, mas tu és um bolchevique desgraçado mesmo, acha tudo um lixo imperialista.
- Não tenho culpa se é, ué. Veja só, aquela história de judeus em fúria com licença para fazer crimes de guerra nas linhas alemãs nada mais é do que uma alegoria de Abu Ghraib, aquela prisão de Bagdá onde tio Sam torturava iraquianos. Tá tudo ali, é a validação da tortura e do terror. A lógica é a mesma, se os esteites poderiam cometer crimes de guerra contra o nazistas porque eram nazistas, também podem fazer o mesmo contra os árabes porque são árabes. Sem falar naquela louca que queima tudo e não tem nada a ver com a história.
- Mas você pode inverter o raciocínio, o fato do diretor botar isso no filme pode ser justamente pra denunciar Abu Ghraib, não pra validar. E como assim nada a ver com a história? Você tá louco? Ela é a história. Ela é judia como eles, estão unidos por exegese.
- Posso me meter na conversa? Vocês falaram em judeus, como aquele maluco do Grande Lebowski?
- Não Lenny, cala a boca, não se mete que estamos falando sério. Não tem nada a ver com o outro filme, só porque o cara é judeu também. Exegese é aquilo que o Charles Manson faz em Helter Skelter, é a tradição religiosa de unir coisas diferentes dos livros sagrados para criar uma idéia totalmente nova. Assim o Charles Manson se inspirou na música e na bíblia e juntou as duas coisas para criar um novo ideário e sair matando.
- Nada a ver, isso é o declínio moral do império americano.
- Lá vem você de novo com esse bolchevismo. Escuta, a exegese é o principal instrumento teórico de judeus e cristãos. Com a exegese, por exemplo, Tomás de Aquino pôde, no século XIII, juntar duas lendas diferentes, a de cristo e a de Adão e Eva, para inventar a remissão do pecado original, o que permitiu criar um lastro para que a igreja vendesse o perdão de pecados e se tornasse podre de rica. Vocês entendem?
- Mas a igreja também faz parte da escória imperialista!
- Helter Skelter não é o nome do filme dos Beatles dirigido pelo Polanski, que inspirou a mulher do Charles Manson a matar John Lennon num campo de centeio?
- Ah, que desgraça, vocês dois estão entendendo tudo errado. Eu desisto! Vamos falar da Tori Black e tomar mais uma. Ô Biga´s, desce mais uma gelada aí, valeu?
25/02/2010
19/02/2010
Prensados
É ano eleitoral. É de novo aquela agitação no estômago da imprensa, em busca de novidades saídas diretamente das tripas do processo eleitoral.
Eu me lembro quando era criança, a primeira eleição pra presidente depois de duas décadas de ditadura. Em termos de política, infelizmente, a coisa sempre foi meio nebulosa lá em casa. Meu pai, por exemplo, achava que se um dos candidatos ganhasse o MST viria trazer quinze pessoas para morar em cada casa. O que o MST iria vir fazer na nossa casa é uma coisa que meu pai nunca se perguntou, ele parecia mesmo acreditar que o MST iria querer plantar alface nos doze metros quadrados do nosso quintal ao invés de cultivar uma dessas largas extensões de terra praticamente sem uso dos nossos latifúndios.
Mas isso era, também, reflexo dos medos que a ditadura deixou, que aos poucos vão sumindo. É a ideologia como substituto não só da moral, mas também da razão, que levava a classe média a votar desesperada naquilo que a tevê mandava. Mas como toda razão não fundamentada, ela se erode com o tempo, vítima de sua própria inconsistência.
A ditadura durou vinte e cinco anos, o tempo de uma geração, e completa agora vinte anos que nos livramos dela, o que deveria nos dar uma nova capacidade de estruturar a sociedade. O MST há muito já se estabeleceu e longe de querer vir pra cidade, criou grandes cooperativas no interior do país, gerando leite, grãos e todo tipo de alimento, o que mostra que longe de ser uma ameaça, é o mais claro exemplo de reforma social visando consolidar uma sociedade moderna no campo, longe dos modelos retrógrados herdados de nosso passado colonial. E digo isso como exemplo de que nossa percepção hoje em dia pode se basear mais nos dados da realidade do que naquelas sombrias ameaças de futuro que faziam a alegria dos semanários.
Estamos mais instruídos hoje. O número de miseráveis caiu pela metade na última década, o acesso à cultura e educação aumentou e, como conseqüência, já aprendemos que não podemos mais confiar na tevê para decidirmos. O povo não é bobo deixou de ser palavra de ordem e virou fato, deixando os grandes jornais e tevês do passado apavorados com a queda brutal de tiragem e audiência.
Há um ano atrás um desses veículos moribundos previu que um terço da população do país seria arrasada pela gripe suína. O povo apavorou, mas logo viu a mentira. O jornal publicou um nota sobre o erro uns três meses depois, achando que sairia impune. A queda brutal de suas vendas têm sido punição apropriada.
Eu me lembro quando era criança, a primeira eleição pra presidente depois de duas décadas de ditadura. Em termos de política, infelizmente, a coisa sempre foi meio nebulosa lá em casa. Meu pai, por exemplo, achava que se um dos candidatos ganhasse o MST viria trazer quinze pessoas para morar em cada casa. O que o MST iria vir fazer na nossa casa é uma coisa que meu pai nunca se perguntou, ele parecia mesmo acreditar que o MST iria querer plantar alface nos doze metros quadrados do nosso quintal ao invés de cultivar uma dessas largas extensões de terra praticamente sem uso dos nossos latifúndios.
Mas isso era, também, reflexo dos medos que a ditadura deixou, que aos poucos vão sumindo. É a ideologia como substituto não só da moral, mas também da razão, que levava a classe média a votar desesperada naquilo que a tevê mandava. Mas como toda razão não fundamentada, ela se erode com o tempo, vítima de sua própria inconsistência.
A ditadura durou vinte e cinco anos, o tempo de uma geração, e completa agora vinte anos que nos livramos dela, o que deveria nos dar uma nova capacidade de estruturar a sociedade. O MST há muito já se estabeleceu e longe de querer vir pra cidade, criou grandes cooperativas no interior do país, gerando leite, grãos e todo tipo de alimento, o que mostra que longe de ser uma ameaça, é o mais claro exemplo de reforma social visando consolidar uma sociedade moderna no campo, longe dos modelos retrógrados herdados de nosso passado colonial. E digo isso como exemplo de que nossa percepção hoje em dia pode se basear mais nos dados da realidade do que naquelas sombrias ameaças de futuro que faziam a alegria dos semanários.
Estamos mais instruídos hoje. O número de miseráveis caiu pela metade na última década, o acesso à cultura e educação aumentou e, como conseqüência, já aprendemos que não podemos mais confiar na tevê para decidirmos. O povo não é bobo deixou de ser palavra de ordem e virou fato, deixando os grandes jornais e tevês do passado apavorados com a queda brutal de tiragem e audiência.
Há um ano atrás um desses veículos moribundos previu que um terço da população do país seria arrasada pela gripe suína. O povo apavorou, mas logo viu a mentira. O jornal publicou um nota sobre o erro uns três meses depois, achando que sairia impune. A queda brutal de suas vendas têm sido punição apropriada.
11/02/2010
Como matei John Lennon
É engraçado, eu, como muitas pessoas, sou dado a certo espanto pelas coincidências, embora elas não sejam mais nada além do que a palavra diz, coincidências.
Mas acho que às vezes a gente pode ter um faro especial pra coisa e segue impulsos sem ter muita noção do que está fazendo. Às vezes dá certo, na maioria das vezes não, mas essa minoria de vezes que dá certo é o que fica gravado na nossa memória e nos espanta. É o caso clássico do experimento de Skinner e seus pombos religiosos.
Mas o fato é que fiquei com aquele livro por uns dez anos na fila pra ler e um dia deu na telha de ler. Li ele de um tapa só e fiquei estupefato e fui na internet procurar pelo autor, JD Sallinger, e descobri que ele acabara de morrer a apenas algumas horas.
Que coisa, porque tive que esperar pra ler o livro justo quando o cara estava no leito de morte? Nem sequer mandar um elogio pra ele eu posso mais.
O mais curioso do livro é que a maioria faz uma defesa do livro que dá vontade de vomitar e a gente pensa que nunca vai ler o livro. Dizem que é um livro sobre um adolescente voltando pra casa e retratando as angústias de um adolescente padrão.
Não poderiam estar mais errados. E é por isso que não entendem porque o cara que matou John Lennon se dizia inspirado no livro.
Eu sei que vou estragar para muita gente a grande graça do livro que é sacar isso, então parem de ler aqui se pretendem ler o livro num futuro próximo. O livro é na verdade o relato de um escritor de trinta anos, aprisionado no hospício, em meio a uma crise psicótica severa, que começa a desdobrar sua identidade em várias personalidades diferentes, sendo uma delas o próprio narrador do livro, Caufield, que parte numa jornada interagindo com essas pessoas reais ou não.
É simplesmente genial isso, grande lance de mestre do Sallinger e creio que a própria explicação dele do porque se retirava do convívio social após escrever o livro. Está tudo lá no romance, só que de forma tão disfarçada, que a maioria das pessoas vai ler o relato de Caufield sem perceber que o próprio Caufield é o delírio de um outro personagem secundário do livro, que é justamente a única pessoa que Caufield consegue ver no hospício. É tudo tão sutil que é de tirar o fôlego e ficamos mesmo com a sensação de que estamos enlouquecendo em pensar que o livro se trata disso, que estamos tendo uma grande ilusão paranóide do tipo teoria da conspiração.
O passo seguinte, é claro, é matar John Lennon, mas aí já é outra história...
Mas acho que às vezes a gente pode ter um faro especial pra coisa e segue impulsos sem ter muita noção do que está fazendo. Às vezes dá certo, na maioria das vezes não, mas essa minoria de vezes que dá certo é o que fica gravado na nossa memória e nos espanta. É o caso clássico do experimento de Skinner e seus pombos religiosos.
Mas o fato é que fiquei com aquele livro por uns dez anos na fila pra ler e um dia deu na telha de ler. Li ele de um tapa só e fiquei estupefato e fui na internet procurar pelo autor, JD Sallinger, e descobri que ele acabara de morrer a apenas algumas horas.
Que coisa, porque tive que esperar pra ler o livro justo quando o cara estava no leito de morte? Nem sequer mandar um elogio pra ele eu posso mais.
O mais curioso do livro é que a maioria faz uma defesa do livro que dá vontade de vomitar e a gente pensa que nunca vai ler o livro. Dizem que é um livro sobre um adolescente voltando pra casa e retratando as angústias de um adolescente padrão.
Não poderiam estar mais errados. E é por isso que não entendem porque o cara que matou John Lennon se dizia inspirado no livro.
Eu sei que vou estragar para muita gente a grande graça do livro que é sacar isso, então parem de ler aqui se pretendem ler o livro num futuro próximo. O livro é na verdade o relato de um escritor de trinta anos, aprisionado no hospício, em meio a uma crise psicótica severa, que começa a desdobrar sua identidade em várias personalidades diferentes, sendo uma delas o próprio narrador do livro, Caufield, que parte numa jornada interagindo com essas pessoas reais ou não.
É simplesmente genial isso, grande lance de mestre do Sallinger e creio que a própria explicação dele do porque se retirava do convívio social após escrever o livro. Está tudo lá no romance, só que de forma tão disfarçada, que a maioria das pessoas vai ler o relato de Caufield sem perceber que o próprio Caufield é o delírio de um outro personagem secundário do livro, que é justamente a única pessoa que Caufield consegue ver no hospício. É tudo tão sutil que é de tirar o fôlego e ficamos mesmo com a sensação de que estamos enlouquecendo em pensar que o livro se trata disso, que estamos tendo uma grande ilusão paranóide do tipo teoria da conspiração.
O passo seguinte, é claro, é matar John Lennon, mas aí já é outra história...
06/02/2010
Volta pra casa
Ele vinha saindo com pressa do serviço, precisava chegar ao térreo e passar pela porta da frente antes que o porteiro encerrasse o expediente e a trancasse. Estava quase lá quando o celular tocou. “Amor, você tá vindo pra casa?”, perguntou a voz melosa do outro lado. Ele apressado explicou que estava e que a amava muito e mandou um beijo e desligou e olhou em frente e descobriu que era tarde demais, o porteiro acabara de trancar tudo.
Ficou com raiva do aparelho, da mulher, da empresa, de tudo. Agora teria que dar a volta no prédio e sair por trás e perder uns bons quinze minutos, mas não tinha outro jeito. Tirou o paletó e botou no braço enquanto suava litros em seu percurso.
Com essa volta toda não ia dar tempo de pegar o ônibus. Resolveu tomar um táxi. Ia se aproximando do ponto quando viu que havia um veículo lá parado. Só um. Saiu correndo apressado quando o celular tocou de novo. “Amor, você já está chegando?” Perguntou a mesma voz melosa de antes. Ele explicou que ia demorar um pouco mas que logo chegava. Falou que sim, que ainda amava ela e que não devia se preocupar com essas bobagens. Mandou um beijo também fazendo uma voz suave quase em falsete.
Desligou o aparelho e olhou pra frente a tempo de ver o último táxi sair. Agora não tinha jeito, teria que ir de ônibus mesmo. Foi andando até o terminal. Chegou lá ainda mais suado. Viu seu ônibus parado no ponto e pensou “Finalmente um pouco de sorte hoje!”. No caminho o celular tocou e ele pensou em nem atender mas viu que era ela e sabia que ela ficava furiosa quando ele não atendia. “Oi... é... sim... é... tá demorando mesmo...” ele respondia para aquela voz que agora já não era tão melosa do outro lado, “é... eu sei meu amor... eu estou indo... já disse que estou indo... não, não estou no bar, estou no terminal de ônibus... já disse, não estou bebendo, sei lá que barulho você está ouvindo, aqui eu só ouço motores e gente... não, já disse, não tô no bar bebendo e vendo futebol... tá... tá... tá bom... tá... eu também te amo”.
Desligou apressado e olhou a tempo de ver o ônibus saindo. Agora estava perdido de vez. Tirou a gravata e decidiu ir a pé o resto do caminho. Tinha dias que tudo dava errado. Foi passando por uma pracinha e lembrou que brincava ali quando era criança. Lembrou de uma vez que brigou com os pais e se escondeu ali chorando até o anoitecer.
O celular tocou de novo. Era ela. Ele espatifou o aparelho contra o chão com raiva e desespero, pisoteou-o e correu para a praça para chorar até anoitecer.
Ficou com raiva do aparelho, da mulher, da empresa, de tudo. Agora teria que dar a volta no prédio e sair por trás e perder uns bons quinze minutos, mas não tinha outro jeito. Tirou o paletó e botou no braço enquanto suava litros em seu percurso.
Com essa volta toda não ia dar tempo de pegar o ônibus. Resolveu tomar um táxi. Ia se aproximando do ponto quando viu que havia um veículo lá parado. Só um. Saiu correndo apressado quando o celular tocou de novo. “Amor, você já está chegando?” Perguntou a mesma voz melosa de antes. Ele explicou que ia demorar um pouco mas que logo chegava. Falou que sim, que ainda amava ela e que não devia se preocupar com essas bobagens. Mandou um beijo também fazendo uma voz suave quase em falsete.
Desligou o aparelho e olhou pra frente a tempo de ver o último táxi sair. Agora não tinha jeito, teria que ir de ônibus mesmo. Foi andando até o terminal. Chegou lá ainda mais suado. Viu seu ônibus parado no ponto e pensou “Finalmente um pouco de sorte hoje!”. No caminho o celular tocou e ele pensou em nem atender mas viu que era ela e sabia que ela ficava furiosa quando ele não atendia. “Oi... é... sim... é... tá demorando mesmo...” ele respondia para aquela voz que agora já não era tão melosa do outro lado, “é... eu sei meu amor... eu estou indo... já disse que estou indo... não, não estou no bar, estou no terminal de ônibus... já disse, não estou bebendo, sei lá que barulho você está ouvindo, aqui eu só ouço motores e gente... não, já disse, não tô no bar bebendo e vendo futebol... tá... tá... tá bom... tá... eu também te amo”.
Desligou apressado e olhou a tempo de ver o ônibus saindo. Agora estava perdido de vez. Tirou a gravata e decidiu ir a pé o resto do caminho. Tinha dias que tudo dava errado. Foi passando por uma pracinha e lembrou que brincava ali quando era criança. Lembrou de uma vez que brigou com os pais e se escondeu ali chorando até o anoitecer.
O celular tocou de novo. Era ela. Ele espatifou o aparelho contra o chão com raiva e desespero, pisoteou-o e correu para a praça para chorar até anoitecer.
05/02/2010
Cuecas ao mastro
Começou quando conheci esse militante comunista chamado Guaratinga, com dois metros de altura e muito negro, apesar do nome indígena. Ele morava com sete mulheres, uma delas de nome complicado que sempre nos exigia que a chamassem pelo sobrenome germânico dela, Irrekuh.
O fato é que foi Guaratinga quem acabou me apresentando Irrekuh, de longe a mulher mais louca que já conheci. Vinha de alguma pequena colônia de imigrantes do meio do estado e alternava de ânimos de uma forma selvagem. Num segundo estava pulando e cantando e rindo loucamente no meio da multidão na rua, para momentos depois, sem nenhuma causa conhecida, se jogar no chão em prantos e lamentos terríveis, acompanhados de espasmos abdominais e pélvicos. Às vezes ligava uma manhã inteira falando com alegria de uma festa para ir e quando ia à festa começava a chorar e transformava a ocasião num claustrofóbico e pesado velório.
Talvez a loucura de Irrekuh foi o que mais me animou a simpatia instantânea que por ela logo nutri, muito embora seus dotes físicos eram o que normalmente chamavam mais a atenção dos outros. E como ela percebeu logo que encontrara em mim um receptáculo passivo de qualquer tipo de loucura, logo começou a freqüentar minha casa e tornar-se amiga próxima.
Eu nunca soube se ela apenas encontrava em mim um lugar para despejar suas loucuras em busca de alívio ou, pelo contrário, me via como um desafio a ser quebrado, aumentando cada vez mais o grau de suas loucuras, até que eu mesmo não mais suportasse. Sejam lá quais forem os motivos, é verdade que ela me proporcionou os dias mais felizes e tristes ao mesmo tempo que já conheci, tamanha a oscilação dela durante o dia, que acabava por me arrastar.
Ela costumava a vir diariamente e pedir-me se podia tirar a roupa, pois estava muito quente. Eu dizia que sim e me alegrava em vê-la andando sem roupas o dia inteiro pela casa, embora fingisse não ligar para isso. Não era algo com maldade ou erotismo, mas sim uma espécie de acabamento perfeito para o lar, algo para se ver, como uma janela com vista para o mar. Em seguida ela me contava todas suas alegrias e tristezas com seus três ou quatro namorados da vez e me pedia conselhos, que eu nunca dava.
Depois pedia uma muda de roupas minha e ia embora, com especial preferência pelas minhas cuecas. E foi assim que Guaratinga encontrou uma delas no varal de sua casa e até hoje a usa, sem saber que era minha. Eis aí minha valiosa contribuição à causa revolucionária!
O fato é que foi Guaratinga quem acabou me apresentando Irrekuh, de longe a mulher mais louca que já conheci. Vinha de alguma pequena colônia de imigrantes do meio do estado e alternava de ânimos de uma forma selvagem. Num segundo estava pulando e cantando e rindo loucamente no meio da multidão na rua, para momentos depois, sem nenhuma causa conhecida, se jogar no chão em prantos e lamentos terríveis, acompanhados de espasmos abdominais e pélvicos. Às vezes ligava uma manhã inteira falando com alegria de uma festa para ir e quando ia à festa começava a chorar e transformava a ocasião num claustrofóbico e pesado velório.
Talvez a loucura de Irrekuh foi o que mais me animou a simpatia instantânea que por ela logo nutri, muito embora seus dotes físicos eram o que normalmente chamavam mais a atenção dos outros. E como ela percebeu logo que encontrara em mim um receptáculo passivo de qualquer tipo de loucura, logo começou a freqüentar minha casa e tornar-se amiga próxima.
Eu nunca soube se ela apenas encontrava em mim um lugar para despejar suas loucuras em busca de alívio ou, pelo contrário, me via como um desafio a ser quebrado, aumentando cada vez mais o grau de suas loucuras, até que eu mesmo não mais suportasse. Sejam lá quais forem os motivos, é verdade que ela me proporcionou os dias mais felizes e tristes ao mesmo tempo que já conheci, tamanha a oscilação dela durante o dia, que acabava por me arrastar.
Ela costumava a vir diariamente e pedir-me se podia tirar a roupa, pois estava muito quente. Eu dizia que sim e me alegrava em vê-la andando sem roupas o dia inteiro pela casa, embora fingisse não ligar para isso. Não era algo com maldade ou erotismo, mas sim uma espécie de acabamento perfeito para o lar, algo para se ver, como uma janela com vista para o mar. Em seguida ela me contava todas suas alegrias e tristezas com seus três ou quatro namorados da vez e me pedia conselhos, que eu nunca dava.
Depois pedia uma muda de roupas minha e ia embora, com especial preferência pelas minhas cuecas. E foi assim que Guaratinga encontrou uma delas no varal de sua casa e até hoje a usa, sem saber que era minha. Eis aí minha valiosa contribuição à causa revolucionária!
Sonhos
Meu amigo Sarlie me lembrou outro dia da história de controlar sonhos. É algo muito interessante de se fazer e uma experiência realmente gratificante. Tem até uns malucos no Havaí que montaram uma escola para as pessoas treinarem controle dos sonhos.
O sono, longe de ser um período de cérebro desligado é um dos períodos de maior atividade cerebral e várias vezes consegui resolver problemas que me incomodavam há dias durante o sono, de tanto que pensei neles antes de dormir. De fato, o sono é um dos melhores momentos para resolver problemas complicados pois o cérebro está completamente dedicado a tarefas abstratas, sem interrupção de barulhos e imagens do mundo externo, isto é, completamente concentrado.
Minha habilidade em controle os sonhos, no entanto, veio dos sonhos recorrentes. Começaram no início da adolescência. Em princípio era o colégio que eu estudava e odiava que sempre desabava e eu morria. Fiquei anos sonhando com aquilo e aprendi ali a controlar o sonho e fugir para lugares diferentes em cada sonho, depois de umas quatro ou cinco vezes em que eu morri soterrado no banheiro. Por fim, um dia consegui fugir antes do desabamento e nunca mais sonhei com aquilo de novo.
Então vieram os sonhos recorrentes bons. Meu favorito era aquele em que eu ficava preso com centenas de mulheres lindas na ilha do topless. Eu sonhava aquilo noite após noite, sempre encontrando mulheres diferentes e mais lindas que as anteriores. Foi o melhor período da minha vida, apesar da tristeza que era em ter que acordar e abandonar as mulheres sozinhas naquela ilha em orgias solitárias. Sem falar no banho que eu precisava tomar quando acordava para me livrar de vez do sono e das roupas meladas.
Mas então a adolescência foi acabando e a juventude se esvaindo e esses sonhos rareando, de forma que agora são só pesadelos com cidades ciclópicas lovecraftianas e alegorias enigmáticas. No mais comum deles estou eu curvado sobre o teclado de meu computador, com o corpo inclinado, quase me fundindo à máquina. Meus dedos batem rápidos nas teclas e com força e durante horas a fio estourando a pele e os vasos sangüíneos, encharcando de sangue o teclado, a mesa e o chão.
E por mais que eu digite nunca posso parar pois atrás de mim está a morte, com seu manto puído embolorado e seu corpo de ossos com um chicote na mão a açoitar minhas costas mandando que eu acelere e digite mais e mais e mais. Então me envergo ainda mais e sigo no tormento sem fim.
O sono, longe de ser um período de cérebro desligado é um dos períodos de maior atividade cerebral e várias vezes consegui resolver problemas que me incomodavam há dias durante o sono, de tanto que pensei neles antes de dormir. De fato, o sono é um dos melhores momentos para resolver problemas complicados pois o cérebro está completamente dedicado a tarefas abstratas, sem interrupção de barulhos e imagens do mundo externo, isto é, completamente concentrado.
Minha habilidade em controle os sonhos, no entanto, veio dos sonhos recorrentes. Começaram no início da adolescência. Em princípio era o colégio que eu estudava e odiava que sempre desabava e eu morria. Fiquei anos sonhando com aquilo e aprendi ali a controlar o sonho e fugir para lugares diferentes em cada sonho, depois de umas quatro ou cinco vezes em que eu morri soterrado no banheiro. Por fim, um dia consegui fugir antes do desabamento e nunca mais sonhei com aquilo de novo.
Então vieram os sonhos recorrentes bons. Meu favorito era aquele em que eu ficava preso com centenas de mulheres lindas na ilha do topless. Eu sonhava aquilo noite após noite, sempre encontrando mulheres diferentes e mais lindas que as anteriores. Foi o melhor período da minha vida, apesar da tristeza que era em ter que acordar e abandonar as mulheres sozinhas naquela ilha em orgias solitárias. Sem falar no banho que eu precisava tomar quando acordava para me livrar de vez do sono e das roupas meladas.
Mas então a adolescência foi acabando e a juventude se esvaindo e esses sonhos rareando, de forma que agora são só pesadelos com cidades ciclópicas lovecraftianas e alegorias enigmáticas. No mais comum deles estou eu curvado sobre o teclado de meu computador, com o corpo inclinado, quase me fundindo à máquina. Meus dedos batem rápidos nas teclas e com força e durante horas a fio estourando a pele e os vasos sangüíneos, encharcando de sangue o teclado, a mesa e o chão.
E por mais que eu digite nunca posso parar pois atrás de mim está a morte, com seu manto puído embolorado e seu corpo de ossos com um chicote na mão a açoitar minhas costas mandando que eu acelere e digite mais e mais e mais. Então me envergo ainda mais e sigo no tormento sem fim.
às vezes não dá
Encontrei ela no supermercado e ela disse: estou brava com você! Eu não sei porque isso me surpreendia uma vez que ela sempre dizia algo assim parecido, embora eu não lembrasse ao certo por que o namoro havia acabado.
Eu li algo que você escreveu no jornal, ela disse, e era sobre mim. Meu bem, eu disse, tudo que eu escrevo sempre é sobre você. Ela corou um pouco e depois disse: achei que você escrevia sobre as outras. É sempre sobre você e sempre sobre as outras também.
Ela se irritou com a nova resposta e perguntou se eu estava comparando ela com outras mulheres e eu disse que ela não devia ter medo de ser comparada, pois não estava em último na corrida, mas sim naquele bolo que formam os corredores que estão ali no meio da prova.
A resposta irritou ela mais ainda e ela saiu bufando sem se despedir. Parece que sempre foi assim. Lembro dos tempos de namoro em que ela chegava e estava sempre angustiada, ou nervosa, ou irritada, ou estressada ou qualquer coisa tempestuosa. Daí ficava mais de duas horas falando sem parar e reclamando da vida e de tudo e de todos e eu lá já sem esperança de conseguir alguma atividade sexual naquela noite, até que ela finalmente amaciava a vinha para mim. Um dia eu disse a ela que não adiantava ela me dizer tudo aquilo, que eu não tinha interesse nas frustrações e angustias e dúvidas e raivas dela, que apenas me interessava que ela soubesse o que queria da vida e fosse em frente. Ela ficou muito irritada com aquilo, disse que eu só pensava em sexo e da importância de compartilhar.
Daí eu disse que ela podia compartilhar à vontade, mas isso não mudaria nada, pois eu não iria esmurrar o chefe dela para ele lhe dar um aumento, ou esmurrar o pai dela para lhe respeitar, ou esmurrar o padre dela por ter mentido durante tantos anos nem esmurrar ela para aprender a parar de se lamentar e tocar a vida, de forma que ela podia compartilhar o quanto quisesse que isso não serviria para absolutamente nada.
Ela ficou muito triste naquela noite e nossa vida sexual minguou de vez até que ela disse que contava tudo para a mãe dela, uma senhora minha vizinha que me conhecia desde criança e foi aí que o relacionamento acabou de vez. Eu não podia suportar aquela senhora sabendo tanto da minha vida sexual.
Aí, depois de um tempo do evento no supermercado escrevi uma série de crônicas sobre os cães de rua. Ela ficou furiosa e me perguntou se aquilo também era sobre ela. Meu bem, eu disse novamente, tudo que eu escrevo sempre é sobre você. E nunca mais nos vimos então...
Eu li algo que você escreveu no jornal, ela disse, e era sobre mim. Meu bem, eu disse, tudo que eu escrevo sempre é sobre você. Ela corou um pouco e depois disse: achei que você escrevia sobre as outras. É sempre sobre você e sempre sobre as outras também.
Ela se irritou com a nova resposta e perguntou se eu estava comparando ela com outras mulheres e eu disse que ela não devia ter medo de ser comparada, pois não estava em último na corrida, mas sim naquele bolo que formam os corredores que estão ali no meio da prova.
A resposta irritou ela mais ainda e ela saiu bufando sem se despedir. Parece que sempre foi assim. Lembro dos tempos de namoro em que ela chegava e estava sempre angustiada, ou nervosa, ou irritada, ou estressada ou qualquer coisa tempestuosa. Daí ficava mais de duas horas falando sem parar e reclamando da vida e de tudo e de todos e eu lá já sem esperança de conseguir alguma atividade sexual naquela noite, até que ela finalmente amaciava a vinha para mim. Um dia eu disse a ela que não adiantava ela me dizer tudo aquilo, que eu não tinha interesse nas frustrações e angustias e dúvidas e raivas dela, que apenas me interessava que ela soubesse o que queria da vida e fosse em frente. Ela ficou muito irritada com aquilo, disse que eu só pensava em sexo e da importância de compartilhar.
Daí eu disse que ela podia compartilhar à vontade, mas isso não mudaria nada, pois eu não iria esmurrar o chefe dela para ele lhe dar um aumento, ou esmurrar o pai dela para lhe respeitar, ou esmurrar o padre dela por ter mentido durante tantos anos nem esmurrar ela para aprender a parar de se lamentar e tocar a vida, de forma que ela podia compartilhar o quanto quisesse que isso não serviria para absolutamente nada.
Ela ficou muito triste naquela noite e nossa vida sexual minguou de vez até que ela disse que contava tudo para a mãe dela, uma senhora minha vizinha que me conhecia desde criança e foi aí que o relacionamento acabou de vez. Eu não podia suportar aquela senhora sabendo tanto da minha vida sexual.
Aí, depois de um tempo do evento no supermercado escrevi uma série de crônicas sobre os cães de rua. Ela ficou furiosa e me perguntou se aquilo também era sobre ela. Meu bem, eu disse novamente, tudo que eu escrevo sempre é sobre você. E nunca mais nos vimos então...
Derretendo
Eu costumava a suportar bem os verões, adorava mesmo a época, mas esse ano ou estou doente ou o calor está demais. Lembro de já ter pego quarenta graus aqui muitos anos atrás e não parecer tão ruim. Acho que desacostumamos do calor mesmo, depois de um inverno tão ferrado como este último.
Meio-dia e o cérebro começa a derreter. Praguejo contra o ventilador velho que já não funciona direito e saio pra almoçar num ar condicionado. Isto é, num lugar qualquer que seja refrigerado. Entro num supermercado e pego um prato de coxinhas e uma água com gelo até a borda do copo. Fico lá comendo lentamente apenas para aproveitar ao máximo o ar gelado do local.
Tudo mais ou menos bem, até resolver ir no banheiro. Nunca vi um lugar tão lotado. Nem tão sujo. Todos os mictórios ocupados e, pra piorar, um sujeito de tatuagens e topete no cabelo faz poses na frente do espelho pra se arrumar. É a era do metrossexualismo, quer a gente queira ou não.
Depois de mil poses e beicinhos e ajeitadas no topete ele desocupa o local e posso lavar meu rosto um pouco. Não adianta. O calor persiste e resolvo desistir de usar o banheiro que não desocupa e volto para o ar condicionado.
Fico lá zanzando a esmo, até que já passei três vezes por cada seção e sei que é hora de ir. Venho zanzando pela Lauro Linhares acompanhando as placas dos carros, tentando lembrar fatos que coincidam com as terminações. Vejo um carro terminando nos números 0820, e depois de muito forçar a mente me lembro, agosto de 1920, nascimento de Charles Bukowski.
O primeiro foi fácil, olho pela estrada em busca de outro número que me chame atenção. Um carro azul desses que custa cem mil na concessionária passa por mim com a placa 1185. Esse era difícil.
Eu sentia o sol queimando minha cabeça enquanto eu tentava com afinco lembrar uma data que encaixasse. Fico acompanhando o carro que vai no engarrafamento, como se isso pudesse me ajudar. Quando estou quase desistindo eu lembro, novembro de 1985, primeira publicação de Calvin e Haroldo, minha tira de jornal favorita.
Estou lá me felicitando pela lembrança quando vejo o sujeito motorista do carrão jogando seu lixo pra fora da janela. Canalha, porco!
Vejo o boné do motorista e logo imagino um adolescente e me flagro pensando na decadência dos jovens. Daí ele joga novamente seu lixo pela janela e reparo que é um senhor lá pelos setenta anos. Francamente, tanto dinheiro para comprar um carro desses, mas tão pouca educação. Doze palavrões depois e eu volto a andar pra casa.
Meio-dia e o cérebro começa a derreter. Praguejo contra o ventilador velho que já não funciona direito e saio pra almoçar num ar condicionado. Isto é, num lugar qualquer que seja refrigerado. Entro num supermercado e pego um prato de coxinhas e uma água com gelo até a borda do copo. Fico lá comendo lentamente apenas para aproveitar ao máximo o ar gelado do local.
Tudo mais ou menos bem, até resolver ir no banheiro. Nunca vi um lugar tão lotado. Nem tão sujo. Todos os mictórios ocupados e, pra piorar, um sujeito de tatuagens e topete no cabelo faz poses na frente do espelho pra se arrumar. É a era do metrossexualismo, quer a gente queira ou não.
Depois de mil poses e beicinhos e ajeitadas no topete ele desocupa o local e posso lavar meu rosto um pouco. Não adianta. O calor persiste e resolvo desistir de usar o banheiro que não desocupa e volto para o ar condicionado.
Fico lá zanzando a esmo, até que já passei três vezes por cada seção e sei que é hora de ir. Venho zanzando pela Lauro Linhares acompanhando as placas dos carros, tentando lembrar fatos que coincidam com as terminações. Vejo um carro terminando nos números 0820, e depois de muito forçar a mente me lembro, agosto de 1920, nascimento de Charles Bukowski.
O primeiro foi fácil, olho pela estrada em busca de outro número que me chame atenção. Um carro azul desses que custa cem mil na concessionária passa por mim com a placa 1185. Esse era difícil.
Eu sentia o sol queimando minha cabeça enquanto eu tentava com afinco lembrar uma data que encaixasse. Fico acompanhando o carro que vai no engarrafamento, como se isso pudesse me ajudar. Quando estou quase desistindo eu lembro, novembro de 1985, primeira publicação de Calvin e Haroldo, minha tira de jornal favorita.
Estou lá me felicitando pela lembrança quando vejo o sujeito motorista do carrão jogando seu lixo pra fora da janela. Canalha, porco!
Vejo o boné do motorista e logo imagino um adolescente e me flagro pensando na decadência dos jovens. Daí ele joga novamente seu lixo pela janela e reparo que é um senhor lá pelos setenta anos. Francamente, tanto dinheiro para comprar um carro desses, mas tão pouca educação. Doze palavrões depois e eu volto a andar pra casa.
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