O pé esquerdo impulsiona, flexionando músculos e tendões enquanto o pé direito avança veloz e silente. É preciso ser rápido. É preciso treinar. É preciso repetir o movimento mil vezes com a precisão de uma máquina. A espada empunhada se projeta para frente e rasga o alvo. O suor escorre pelo rosto, pelo corpo, deixando no chão uma trilha de pingos que se soma a trilha imaginária do sangue dos inimigos. É preciso repetir mil vezes cada movimento com a espada para alcançar a perfeição. É preciso extirpar todos os erros. É preciso aniquilar o que resta de humano em si para tornar-se homem.
Saio exausto depois de quatro horas de prática. É uma rotina dura mas necessária. O inimigo não irá esperar se você não tiver praticado sua espada. O inimigo tem revólveres e fuzis e todo tipo de armas modernas. Por isso é preciso praticar mais e mais. Extirpar os erros. Aniquilar o que resta de humano para tornar-me homem.
A noite é tranqüila e durmo pesado esgotado com o ritmo de doze horas de trabalho e quatro horas de treino com a espada. Quando bate cinco horas da amanhã levanto para mais um dia de trabalho duro.
Meu café é tranqüilo, meditativo, enquanto espero pelo embate. Chego às sete horas no serviço já pronto para aniquilar meus inimigos. São crianças que correm de todos os cantos e vêm de todas as direções. Todas elas sorriem e babam e gritam e correm e agem como crianças, enquanto eu as massacro com minha espada imaginária.
Há o grupo de crianças zumbis, cujo cérebro dormente mostra sua apatia no mundo exterior. Imagino-me degolando-as enquanto dito ordens. É preciso subir. É preciso descer. É preciso entrar. É preciso sair.
Não precisa ter sentido, apenas firmeza. É loucura, sim, mas há um método nela, como bem sabia o bardo inglês. A escola me paga para que eu discipline as crianças, para que elas aprendam não a pensar, mas a obedecer ordens, mesmo as mais insensatas. O método então consiste no exercício do arbítrio puro. Se elas estão dentro das salas, eu as mando sair. Se estão fora, mando entrar. Se sobem, mando descer. Me imagino degolando a multidão delas a medida que chegam em minha direção implorando por um pouco de atenção ou afeto, para logo em seguida saírem tristes com sua estima ferida. O estado me paga para educá-los, discipliná-los, torná-los homens e mulheres de verdade. E para isso é preciso aniquilar o que de humano resta neles.
Há o moleque corcunda que pensa que pode ser modelo. Há o de dezesseis anos ainda na quinta série. Há o que chora toda vez que apanha. Há a gorda que sente dor todo dia e a mãe diz que é psicológico. Todos eles têm um ponto fraco. Todos eles tem um canto obscuro onde dói quando se aperta. Minha espada não perdoa meus inimigos.
Wittgenstein foi expulso da escola em que trabalhava ao dar um tapa numa criança. Ninguém entendeu ele, lhe faltou sutileza. Há muitas maneiras de machucar uma criança além de um tapa visível, e é preciso exercê-las com sabedoria para infundir nas crianças o terror e o medo da vida. É preciso ensiná-las o ódio e a obediência cega. É preciso acostumá-las e lamber botas e aceitar a subserviência. É para isso que a escola me paga e é para isso que o estado paga a escola. É preciso formar trabalhadores dóceis, servis e subservientes, trabalhadores perfeitos, capazes de repetir mil vezes o mesmo movimento nas fábricas sem um único erro. É preciso transformá-los em seres precisos como máquinas, é preciso aniquilar o que lhes resta de humanos para que enfim se tornem homens e mulheres.
Saio contente no fim do dia, com meu serviço cumprido rigorosamente. Crianças outrora sorridentes que saem tristes e sombrias como deve ser. Agora novamente mais quatro horas de treino de espada e posso ir para casa. Repetir tudo de novo no dia seguinte. Repetir mil vezes, até que se aniquile o que resta de humano para obter-se o homem.
27/08/2004
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