27/08/2004

No banco da punição

Às vezes tudo o que há a fazer é simplesmente sentar e descer a carga. Nem mais, nem menos, apenas mundano e corriqueiro, espancar o teclado como se você tivesse novamente nove anos precisando vencer a briga contra o colega de onze. Ele era um garoto franzino, mas um adversário considerável se levarmos em conta a diferença de idade.
Por muito tempo guardei o rancor e a amargura contra aquele moleque. Revisei mil, duas mil, milhões de vezes na cabeça o plano de ação. Foi tudo perfeito, até mesmo a briga pareceu iniciada por ele.
Há algo no gosto de sangue que nos faz sentirmos homens. Há algo na violência que nos faz acreditar que podemos ser aquilo que querem que sejamos.
O mundo é um lugar estranho aos nove anos. Ainda é novo. Desejamos as garotas, mesmo que elas não tenham peitos, ou pentelhos, ou qualquer atrativo físico. Mas sabemos que somos garotos e sabemos que elas são garotas e sabemos que precisamos tê-las e possuí-las, o que quer que isso signifique. Na época eu nem sabia. Depois, na adolescência, descobri algo que me fez achar que sabia. Hoje sei que esse é apenas mais um dos mistérios impenetráveis que jamais vislumbrarei a resposta.
Há algo de medo, algo de tensão no ar, minutos antes da briga. Há muito tempo já que não pratico e o teclado me assusta, o oponente é mais velho que eu e as meninas parecem saber o que elas guardam de tão precioso que eu não posso tocar, nem ver, nem cheirar ou lamber. Ainda.
“A felicidade é como a maionese estragada em uma festa de casamento para quatrocentas pessoas”. Não a frase não é minha, minha honestidade acadêmica me obriga às aspas. Foi apenas dito pela boca idiota de mais um orientador desses cursos de treinamento humano empresarial em que no final todos se abraçam, ou se esfregam no sovaco de alguém ou decidem matar o padre.
Mas seja lá o que isso deveria significar, traz na essência a verdade universal da vida, o segredo que faz os mais velhos se calarem e serem tão pensativos, o segredo que faz os adultos tentarem se enganar e evitar a descoberta, o segredo cuja ignorância de sua existência torna as crianças felizes: não importa o que aconteça, tudo acaba em merda. É o sentido universal para onde as coisas fluem, a grande cloaca da história planetária.
Talvez as coisas não precisassem ser assim, talvez houvesse um mundo em que os teclados escrevessem contos sozinhos, sem precisarem de uma surra, um mundo onde os garotos de nove anos são incrivelmente poderosos e aniquilam qualquer garoto de onze, um mundo onde as meninas são sempre atraentes e espertas e não precisam esconder de ninguém o que quer que fosse que elas tinham e se envergonhavam tanto.
Talvez houvesse um mundo em que especialistas de relações humanas fossem enforcados e todo o povo comemoraria com banquetes e frutas e vinhos e licores e incensos que não fedessem. Um mundo em que você não se sentisse tão bem quando finalmente rompesse a tensão elétrica no ar e desse o primeiro soco, arrancando do oponente uma vantagem estratégica vital. Um mundo em que os jovens tivessem na palma da mão aquilo que as garotas tanto ocultavam e pudessem usufruir o quanto quisessem. Um mundo em que o gosto do sangue descendo pela garganta em um pedaço de carne de boi mal-passada, levemente temperada pelo sal e o sabor da fumaça, não fosse absolutamente o melhor sabor do mundo. Um mundo em que a cerveja brotasse nas fontes e ninguém precisasse trabalhar de manhã para poder, ao invés disso, curtir a ressaca. Para que cada homem e cada mulher pudesse curtir ao máximo esse momento pessoal de reflexão e sofrimento reconfortante que se segue a uma boa bebedeira.
Sim, chamam-me de pessimista, mas até mesmo os pessimistas se dão ao luxo de sonhar com sua perfeição vez ou outra, ou se alegrar ao ouvir na sala da direção que o que fez foi horrível e que seu colega ficou com o rosto arrebentado. Às vezes, por mais tempo que se esteja sem prática, tudo o que é preciso é desligar o cérebro e descarregar a carga toda com força total.

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