27/08/2004

A palmatória

Quando eu era criança, eu devia ter notado, o mais perceptivo lá em casa era meu pai. Ele saía cedo, chegava tarde, não nos permitia falar enquanto via TV. Mas mesmo assim foi o primeiro a perceber que o filho mais novo era deficiente mental.
Talvez como prêmio de consolo, por eu ser o deficiente, meu pai sempre me escolhia para lhe ajudar nas tarefas domésticas. E prova do meu retardo é que eu ia mesmo ajudá-lo, enquanto meu irmão e minha mãe davam um jeito de safar-se.
Eu já tinha motivos de sobra para ser mais cauteloso que o normal com qualquer atividade manual, pois minha avó já havia me lançado para sempre na fogueira dos malditos. Eu era canhoto e, segundo ela, tinha mão ruim, por isso não podia segurar panela, bater manteiga, ferver o leite, ou qualquer atividade que exigisse qualquer habilidade ou atenção ou mesmo resquício de racionalidade.
Então eu já ia para as sessões semanais de reparos domésticos com o cuidado redobrado, sabendo da minha maldição. Talvez por isso eu fosse o único naquela casa que conseguisse suportar meu pai, o único a sempre a apoiá-lo e o primeiro a ser rejeitado.
Mal dava cinco minutos de reparos e lá começava ele a urrar e gritar pela casa, que eu não segurara o prego direito, ou medira algo errado, que eu era um retardado e inútil e imprestável e tinha problemas mentais. Apesar de termos sempre sido parecidos, não foi sem tempo que chegou o dia em que ele duvidasse até mesmo que eu lhe fosse filho.
A maldição da vovó ganhava força e meu pai fora o primeiro a perceber. O próximo foi meu avô. Quando descobriu que eu largara o futuro de engenheiro para me dedicar às letras, não tardou a lembrar: eu tivera meningite na infância, e certamente houveram seqüelas que me deixaram com retardo e me levaram a mudar de curso.
Eu já passara dos vinte então, e outra prova do meu retardo é que nem assim eu percebera. Meu déficit cognitivo já chegara num estágio tão avançado que eu duvidava até mesmo daquele que fora meu herói de infância. Do avô que nos visitava todo mês, e que sabia consertar qualquer máquina ou equipamento, e que sempre dava um jeito nos brinquedos quebrados que, nas mãos dele, como mágica, voltavam a funcionar. Do avô que por tanto tempo me inspirara a querer seguir a carreira em curso técnico, do qual fui impedido pelos meus pais, não restando alternativa outra senão tentar a sorte como engenheiro para remediar a frustração do técnico que sempre quis ser. Mas a maldição da vovó já se impusera, eu era o canhoto inábil, portanto jamais seria um técnico. E retardado também, segundo as descobertas de meu pai. De forma que vovô chegara tarde demais na constatação. Antes dele morrer, passávamos longas tardes ouvindo orquestras cubanas no toca-fitas e depois ele me agradecia, como se fosse um estranho a lhe fazer um favor.
Eu devia ter percebido tudo isso, ou meus professores na escola. Eu entrei em muito poucas brigas na escola, mas fui de castigo várias vezes. No jardim de infância fui de castigo por espiar por baixo da saia das meninas e repreendido pela professora por escrever tanto com a mão direita quanto com a esquerda, ao invés de escolher uma mão só como um garoto normal.
Na aula de religião, o que vale dizer é o equivalente de literatura para o primário, lembro-me de ter entrado em uma briga. Ou quase isso. Estávamos nos insultando eu e outro cara quando ele me encostou no corrimão da escada e me exigiu desculpas. Apenas lhe respondi que ele estava com mau hálito. Ele ameaçou me jogar lá de cima e eu, segurando no braço dele com força, disse: “vai em frente, despencamos nós dois lá embaixo”.
E como ele não sabia o que fazer comecei a jogar meu peso para baixo para que ambos despencássemos. Ele desistiu da idéia e nenhum dos dois voou escada abaixo.
Papai tinha razão, eu realmente tinha problemas.

Nenhum comentário: