27/08/2004

O balangandã de Marx

Meu bom tio avô me ensinou o truque quando eu fiz dezesseis anos: se precisar confiar em alguém confia em cavalos, pois eles não falam, mas se quiser apostar em alguém, não aposte em cavalos, aposte na previsibilidade dos outros.
Foi um bom conselho. Com ele consegui minha primeira mulher, meu primeiro emprego e, ainda, meu primeiro porre de uísque. O que, de certa forma, confere um caráter de pensamento fundador da filosofia Fonjic ou, ainda, poderíamos dizer, minha Urphilosophie.
É claro que nada há de mais odioso em pessoas que deliberadamente usam de estrangeirismos em seu texto, ainda mais quando se trata de língua bárbara. Mas o fato é que eu havia criado de tal forma uma rixa com o tal francês que eu precisava de um termo pomposo para contra-atacá-lo. Ele sempre se despedia de nós da porta do bar dizendo: vou revoar. E saía como libélula ou vaga-lume noite afora.
Eu estava na pior. Sem emprego, sem dinheiro, sem bebida, precisando desesperadamente achar a explicação para o sentido da vida e conseguir, com isso, uma bolsa de doutorado. Minha mulher aproveitou a ocasião para se tornar uma fanática por reformas. Afinal, se eu estava estudando e filosofando, não estava fazendo nada. Uma vez constatado o problema, me havia delegado uma longa lista de reformas para fazer: trocar as janelas da casa, trocar as cortinas, trocar o piso, pintar as paredes, trocar os azulejos, acabar com os cupins, trocar os móveis, redecorar tudo e sim, aí, quando sobrasse tempo, descobrir o segredo do universo.
Então eu não podia ficar em casa, e tinha que ir pro bar, e tinha que ver o francês, que sempre estava lá importunando a todos. Ele tinha uma certa atração especial pela minha mesa, parecia gostar mais de me incomodar do que incomodar os outros. Tinha um jeitão de bicha velha, embora procurasse se comportar com um distinto senhor homossexual de 50 anos. Barbosa, era o nome da figura. Morava com a mãe, depois de ter largado a esposa, dois filhos e soltado a franga. No bar era só faniquitos, em casa era um senhor durão, exigindo rigor dos filhos e lhes impondo castigos severos. Eles não gostavam do pai, e acho que isso lhe conferia certa tristeza resignada, embora parecesse tentar ocultar de si mesmo este conhecimento.
Mas o francês era um pé no saco. E calhava de gostar de vir me importunar mais do que importunava os outros fregueses. Acho que isso tinha algo a ver com o fato de eu ter agarrado a mulher dele umas três ou doze vezes. Isso antes que se separassem. O velho já não dava no couro há muito tempo e a patroa, entediada, procurava pelas ruas o que não recebia no lar.
Ele nutria um especial ressentimento por mim. Uma inimizade amarga. Sabia que eu era ateu e, por conta disso, vinha diversas vezes me importunar falando de religião. Falava muito do pecado e salvação, e parecia se martirizar profundamente por a igreja considerar pecado aquilo que ele e o padre tanto apreciavam fazer com os rapazinhos. Ele sempre tentava se colocar como o grande, o líder da situação, que pairava acima de tudo. Mas sua dor irradiava numa auto-rejeição que, ao invés de se manifestar como tal, lhe obrigava a glorificar-se mais e mais e mais, numa tentativa de auto convencimento que nunca tinha sucesso.
E seja pelo meu ateísmo, ou por eu lhe ter comido a esposa e ferido a dignidade de uma identidade masculina que ele mesmo rejeitara, ele tinha especial implicância comigo. E eu com ele, ora, onde já se viu alguém chamado Barbosa querendo convencer os outros de que era francês.
De modo que um dia estava ele todo cheio de colares e balangandãs no bar, quando eu cheguei e sentei numa mesa do fundo. Sentei de costas para o balcão, mas sabia que isso podia retardar, mas nunca impedi-lo. Cinco minutos depois ele estava na minha mesa tentando justificar os balangandãs com base na vida e obra de Marx. Alguma coisa sobre valor de uso, valor de troca, mais-valia, balangandãs e um porre que Marx tomara em sua juventude.
Ele queria incomodar e iniciar uma discussão fútil que durasse a noite intera, de forma que lembrei do conselho do meu tio-avô e ao invés de discordar, concordei com ele dizendo que já tinha lido sobre isso num livro chamado Urphilosophie eines junges Marx. Ele ficou irritado, espumando pelo canto da boca, sem saber o que fazer, porque ao mesmo tempo em que eu concordara com ele eu o rebaixara dizendo já ter lido isso num livro que ele certamente desconhecia. Ele ficou me olhando atentamente para ver se eu piscava ou ria ou dava qualquer sinal da fraude. Bebi minha cerveja e fiquei observando a bolinhas perfeitas subirem.
Ele resmungou alguma coisa e foi embora irritado. Obrigado, tio. Um brinde à boa e velha previsibilidade humana.

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